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“Setor privado não sabe competir”, diz assessor presidencial

No início do ano, o presidente Michel Temer convenceu Hussein Kalout a licenciar-se da função de professor de relações internacionais e pesquisador da Universidade de Harvard para reestruturar a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência. A missão dada a Temer ao cientista político brasiliense, 41 anos, foi transformar a pasta numa espécie de “usina de ideias” que colaborasse com os projetos fundamentais ao desenvolvimento do país e ao mapeamento dos riscos à soberania e segurança nacional.

Em entrevista exclusiva ao Valor, Hussein Kalout fez um diagnóstico sobre a situação do país e detalhou as prioridades da SAE, como os debates sobre um novo modelo de inserção do Brasil no mundo. “O maior legado, talvez entre vários outros da política externa do governo Temer, é criar uma política sistêmica, consistente e focada capaz de compreender e codificar a importância do continente asiático na nova ordem internacional”, sentenciou.

Kalout disse estar focado na formatação de políticas públicas que tenham impacto em até dez anos. E contou que a SAE ajuda a elaborar, por exemplo, uma base científica, tecnológica e industrial para o setor de defesa que vá além da “bala, da granada, da pistola”.

Outra iniciativa é a formatação de uma nova política industrial, na qual está inserida a discussão sobre o tamanho e o papel do BNDES. “O setor privado brasileiro não sabe competir. Poucas são as plataformas industriais no Brasil que aprenderam a competir, a inovar-se e não depender de subsídios do Estado e de medidas protecionistas”, sublinhou. “A política de campeões nacionais fracassou.”

Para ele, a falta de uma “cultura estratégica” condenou o país a enfrentar os mesmos problemas estruturais há décadas: crises econômicas cíclicas, violência urbana e corrupção política. “O Plano Real foi um enorme avanço, mas logo depois tivemos o problema econômico cíclico. Mas isso já tem mais a ver com a política de gestão do que fragilidades estruturais macroeconômicas.”

O secretário, que já trabalhou no Judiciário e no Ministério Público, também comentou os desafios para melhorar o atual sistema político e as dificuldades de se promover mudanças no país. “O Brasil infelizmente sindicalizou demais o funcionamento de suas instituições, de modo que hoje as várias corporações capturaram o Estado”, disse.

Ele destacou avanços institucionais no combate a irregularidades e uma maior reação da sociedade a antigas práticas da classe política, mas defendeu regras que reduzam a corrupção no dia a dia da população. “O Brasil tem mania de ser muito espertinho”, criticou. Leia os principais trechos da entrevista:

Valor: O senhor está preparando uma visão estratégica do país para deixar como legado do governo Temer?

Hussein Kalout: Se a gente focar na ideia de legado pode acabar se frustrando. No Brasil não temos, por tradição, uma cultura estratégica. A SAE, desde que foi criada, no início dos anos 90, pelo presidente Fernando Collor, foi extinta e recriada umas seis vezes. Isso é patológico, demonstra a ausência de uma cultura estratégica no âmbito do pensamento estatal brasileiro.

Valor: Qual a consequência disso?

Kalout: Os problemas que o Brasil está enfrentando, hoje, são praticamente os mesmos problemas que o Brasil enfrentou em décadas passadas ou até no século passado.

Valor: Quais?

Kalout: Crises econômicas cíclicas, violência urbana, corrupção política. É claro que o país avançou e se desenvolveu muito nos últimos anos a partir de várias reformas, especialmente a partir das reformas que estão sendo implementadas no atual governo. Mas, dada a nossa envergadura, o Brasil necessita mais do que nunca um planejamento estratégico de Estado de longo prazo.

Valor: A SAE trabalha com que objetivos?

Kalout: Primeiro, o novo modelo de inserção do Brasil no mundo, precisamos estar integrados de uma forma mais competitiva nas cadeias globais de valor. Precisamos repensar talvez, e isso já está ocorrendo, o nosso modelo microeconômico. Precisamos ampliar e qualificar o nosso desenvolvimento, que depende da produtividade, competitividade e salto tecnológico. E, em terceiro lugar, repensar nossos projetos de defesa e segurança.

Valor: Repensar também o papel e o tamanho das Forças Armadas?

Kalout: Desde a redemocratização, o papel da defesa, da segurança e da inteligência foi relegado a um segundo plano. Havia a compreensão de que, para fortalecer o estado democrático de direito, você precisava enfraquecer e debilitar as Forças Armadas e os aparatos de inteligência. O nosso foco, hoje, é encontrar e modular projetos que recoloquem o papel dessa área em patamar compatível com a envergadura do Brasil no mundo. O presidente Temer tem preocupações com a revitalização das Forças Armadas.

Valor: Revitalizar como?

Kalout: Por exemplo, uma base científica, tecnológica e industrial de defesa é fundamental. É um ativo, mola propulsora da economia porque gera dividendos para o Estado e empregos. A base de lançamento de Alcântara é um grande ativo tecnológico para o país. A parte de segurança cibernética no Exército, o programa espacial na Aeronáutica e a parte do programa nuclear da Marinha também são.

Valor: Considera que o uso das Forças Armadas na segurança pública é adequado?

Kalout: O emprego das Forças Armadas na segurança pública ocorre quando há uma necessidade extrema. Uma nova matriz de segurança pública tem que ser pensada, séria, coerente e consistente.

Valor: Com o colapso fiscal há condições para essa nova matriz de segurança?

Kalout: Não podemos, em função de uma dificuldade econômica, deixar de pensar na segurança pública. Isso está sendo pensado e realizado. No que se refere à segurança das fronteiras tem havido um trabalho consistente. As fronteiras estavam quase que largadas no governo anterior. O fato de se ter uma preocupação e começar a mapear os pontos sensíveis dessa fronteira já é um avanço. O crime organizado tem perfurado as nossas fronteiras. Estudos apontam em torno de R$ 130 bilhões o que o crime organizado movimenta a partir da fronteira brasileira.

Valor: Do ponto de vista estratégico, o que deve conter uma nova matriz de segurança?

Kalout: Uma segurança pública moderna não é feita apenas com homens. Você não vai estacionar agentes do Estado em toda a extensão da fronteira, até porque as perfurações ocorrem no meio da mata, através de alguns rios. É preciso uma segurança tecnológica de fronteiras, com mapeamento de espaços e monitoramento permanente. No médio prazo, tem que se pensar numa política integrada com esses Estados e municípios.

Valor: Como o Brasil deve lidar com o problema da violência urbana de forma estruturada?

Kalout: Enfrentando os motivos da violência urbana: primeiro, na minha visão, educação. Segundo, quando você não tem políticas públicas para as pessoas que vivem em condição de vulnerabilidade, elas acabam sendo excluídas do âmbito da dinâmica social do Estado. O terceiro ponto que contribui é o desemprego. Claro que com investimento em segurança pública você reduz ainda mais a violência urbana, mas a chave para a resolução desse problema está na educação.

Valor: O que fazer com relação ao outro problema histórico, as crises econômicas cíclicas?

Kalout: A ausência de um planejamento estratégico de Estado bem modulado permitiu que o Brasil tivesse crises nos anos 80, 90, 2000 e agora mais recentemente desde 2014. Isso tem mais a ver com a política de gestão do que com fragilidades estruturais macroeconômicas. Na política de gestão o Brasil precisa se aperfeiçoar mais.

“Investimento em segurança pública reduz a violência, mas chave para a resolução desse problema está na educação”

Valor: Em relação à inserção internacional do país, a SAE divulgou um documento sugerindo que a política externa fosse remodelada. Houve avanços nessa discussão?

Kalout: A SAE é uma usina de ideias. O principal ativo da SAE é pensar quais são os riscos ao nosso desenvolvimento e mapear os riscos à soberania e segurança nacional do Estado brasileiro. A despeito de avanços e retrocessos nas últimas décadas na nossa política externa, hoje o Brasil tem uma política exterior muito mais sintonizada com os nossos objetivos de Estado.

Valor: Poderia explicar como se dá essa sintonia?

Kalout: Pela primeira vez na nossa história nós temos uma diplomacia asiática, uma política externa para a Ásia. Isso não ocorreu em tempos passados com esta visão e clareza. O centro gravitacional da ordem internacional está se deslocando para a Ásia. As cadeias produtivas globais estão já fincadas na Ásia, e o Brasil compreendeu isso. O Brasil cresce hoje em outras fronteiras e uma delas é o espaço asiático. Nunca teve um chefe de Estado que tenha ido a uma região tanto quanto o presidente Temer – Japão, Índia, China. O ministro das Relações Exteriores visitou diversos países. Vários ministros de Estado estiveram na Ásia, das mais variadas pastas – Indústria e Comércio, Agricultura, Defesa. O maior legado, talvez entre vários outros da política externa do governo Temer, é criar uma política sistêmica, consistente e focada, capaz de compreender e codificar a importância do continente asiático na nova ordem internacional.

Valor: A corrupção política é o terceiro dos problemas históricos mencionados no seu diagnóstico. Como resolvê-lo se as transformações dependem de seus próprios agentes?

Kalout: A melhor forma de resolver os problemas da política é pela política mesmo. Não existem modelos que possam substituir o papel do Parlamento e dos partidos. O que precisamos é uma educação política. Muitas vezes o brasileiro não sabe exercer o seu direito político. Não existe um sistema de “accountability”. Em outros países, existe uma cobrança do cidadão para com seu candidato, partido e sistema. Também são fundamentais a melhora do processo de persecução penal, de investigação, de punição, o controle sobre os desvios e ilícitos, éticos e morais. Criar uma nova cultura para lidar com o bem público até que o sujeito não aceite ser corrompido nem corrompa outro. A sociedade brasileira já demonstrou a sua intolerância. Isso por si só é um vetor que pode provocar uma transformação.

Valor: O sr. já nota alguma mudança?

Kalout: O fato de o político hoje fazer promessa não é mais tolerável. Todo eleitor brasileiro se lembra do estelionato eleitoral que se cometeu na eleição de 2014. A evolução da sociedade no processo de cobrança precisa ser contínua. Estou vendo isso de uma forma otimista.

Valor: Mas a corrupção também está enraizada no dia a dia da população.

Kalout: Com criação de filtros, de regras, com um conjunto de medidas, é possível resolver. Em vez de ser muito espertinho, seguir as leis. E o Brasil tem a mania de ser muito espertinho. Excesso de esperteza às vezes é burrice.

Valor: Como vê a política hoje sob o prisma das condições reais para a transformação?

Kalout: Estamos fechando um ciclo geracional na política brasileira, basta ver os novos movimentos políticos que estão surgindo. Eles refletem uma nova demanda da sociedade e de uma juventude que quer melhores instituições, melhor representatividade, melhores resultados. Garanto que a política de hoje é muito melhor que a política de 30 anos atrás e a dos próximos anos vai ser melhor do que a de hoje. Os nossos representantes no Parlamento brasileiro de alguma forma não podem adotar práticas que adotavam no passado.

Valor: Por quê?

Kalout: A política de punibilidade é maior. Antigamente, o parlamentar brasileiro podia empregar filho, esposa, sobrinho no seu gabinete, hoje não mais. Ele podia viajar umas 300 vezes sem explicar para o que estava usando aqueles recursos, usava o carro oficial para ir ao shopping. Hoje não pode mais. A vigília é maior. Essa parte evoluiu. O que precisa evoluir é a parte, digamos, substantiva, o saber bem legislar. A educação é parte desse processo. No futuro a tendência é ter candidatos mais bem educados, politicamente falando, e com uma escolaridade mais qualificada.

Valor: O sistema político-partidário brasileiro permite isso?

Kalout: É claro que está refém de próprios vícios do passado, mas não sei se esse modelo vigora por muito tempo. O fim do financiamento privado já vai alterar um pouco essa dinâmica. Enquanto não houver uma pressão real e efetiva para uma reforma ampla, abrangente e transparente, é claro que não vai mudar. Mas o sistema político em si já saiu da inércia porque uma nova geração entende que não dá para manter o status quo. Mas o Brasil não é um país dado a mudanças muito abruptas. É um país corporativista.

Valor: O sr. tocou no ponto que se costuma dizer ser o principal problema brasileiro, o corporativismo. Como a sociedade pode pressionar uma corporação a mudar quando ela não quer mudar?

Kalout: O Brasil infelizmente sindicalizou demais o funcionamento de suas instituições, de modo que hoje as várias corporações capturaram o Estado. Muitas vezes você não pode promover mudanças porque as corporações são contra e aí você vai precisar de alguém com poder suficientemente consistente e forte para fazer essas mudanças, mas ninguém quer assumir esse tipo de risco até o momento.

Valor: Numa visão conspiratória, já se falou que as atitudes pouco ortodoxas do Ministério Público com relação aos políticos se deviam à pressão para suspender a Reforma da Previdência.

Kalout: Não vou entrar no mérito dessas suposições. Mas é inegável que o Ministério Público, durante a última gestão, operou de forma corporativa, contrária talvez à tradição da própria instituição. As instituições têm que funcionar para atender o interesse público, e não demandas corporativas.

Valor: Qual a responsabilidade do setor produtivo privado na resistência às mudanças camuflada em defesa de reformas para os outros e não para si?

Kalout: O setor privado brasileiro não sabe competir. Ele se acostumou a não ter de competir. Poucas são as plataformas industriais no Brasil que aprenderam a competir e a inovar-se e não depender de subsídios do Estado e de medidas protecionistas. Pouquíssimas. Há responsabilidade do Estado, que criou uma relação clientelista entre o público e o privado que acabou criando uma dependência. Isso atrasa inovação, não permite que se dê um salto tecnológico, não qualifica o emprego, não gera produtividade. Boa parte dessas reformas que têm sido levadas a cabo pelo governo tem por objetivo alterar um pouco essa dinâmica. Claro que você tem que proteger a sua indústria nacional, mas existem modelos de proteção. No Brasil não se pode fazer uma abertura econômica de forma abrupta.

“Pela primeira vez na nossa história nós temos uma diplomacia asiática, uma política externa para a Ásia”

Valor: Isso implica mais uma nova política industrial.

Kalout: O Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic) está trabalhando num projeto chamado “Indústria 4.0”, como deve ser o modelo industrial brasileiro do futuro e em que ele precisa estar alicerçado. Temos ajudado o Mdic na modulação de uma plataforma industrial 4.0.

Valor: Quais são as diretrizes da 4.0?

Kalout: É no fundo uma proposta de uma nova política industrial. O primeiro ponto é como interligar competitividade e tecnologia. Em segundo, ser sustentável. Terceiro ponto: viável, barato, palatável. É claro que se a gente tivesse uma reforma tributária aceleraria demais nossa capacidade produtiva e competitiva.

Valor: Quando o senhor diz viável e custo palatável, evoca outra discussão do momento: qual o tamanho deve ter o BNDES?

Kalout: Um dos marcos na forma como o BNDES está procedendo é que os financiamentos precisam ser canalizados para gerar resultados. O olhar anterior era criar campeões nacionais. Essa política de campeões nacionais fracassou, na verdade ela gera lucros específicos para as empresas beneficiadas e não gera desenvolvimento, não tem papel de inclusão social e não dá retorno para o Estado.

Valor: Crédito subsidiado não é um contrassenso em relação à ideia de que o empresário deve superar o vício de contar sempre com o dinheiro do Estado?

Kalout: Não acho um contrassenso. Para o modelo de desenvolvimento brasileiro, o fomento ainda é necessário. Talvez no futuro deixe de ser necessário. O que se está fazendo hoje em relação ao que se fazia anteriormente é ter políticas inteligentes na área de fomento em que se leva três pontos em consideração: geração de emprego, geração de receita e inclusão social.

Valor: Quando será concluído o projeto da política industrial 4.0?

Kalout: O projeto está axiologicamente pronto. Está se discutindo vulnerabilidades, lacunas e como arredondar esse projeto para que ele seja palatável e avance. Creio que no início do ano que vem talvez tenhamos já o projeto todo mais bem acabado.

Valor: Qual a proposta do governo Temer para a área de Defesa?

Kalout: Quando se pensa nessa plataforma não é só indústria e comércio, é ciência e tecnologia. Não existe incentivo para que a base industrial de defesa seja coesa, sólida, produtiva e avançada tecnologicamente.

Valor: O que comporia a base industrial de defesa no Brasil?

Kalout: O fortalecimento do nosso poder naval é vital. Cerca de 10% do comércio mundial trafegam pelo Atlântico Sul e 15% do nosso PIB vêm do mar. Tem que ter uma esquadra equipada, moderna, e nossa esquadra naval é antiga, tem mais de 30 anos. Nós precisamos investir e fortalecer isso. Na Defesa, é fundamental ir além da bala, da granada e da pistola. A defesa é coisa de alta tecnologia, de produção de softwares. Muitas vezes o setor não quer subsídio do Estado. O que ele quer é política de regulação que o proteja, e facilite sua inserção no mundo.

Valor: Como o sr. avalia a contribuição dos 13 anos de governo PT ao país?

Kalout: Todo governo comete erros e acertos. O erros do PT foram estruturais, especialmente na economia. Em outros setores, adotaram-se políticas populistas. Bolsa Família, que já vinha de antes, é um projeto importante para um país em que se tem boa parte da população excluída. O problema é quando você passa a capturar a população em condição de vulnerabilidade a partir desses programas e passa a gerar uma dependência. Isso não é gerar desenvolvimento porque, quando se tem um colapso econômico, você não consegue sequer manter esses programas.

Fonte: Valor

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