O Quanto Eu Caminhei: O salto das mulheres negras nos dados do IBGE
Quando a banda Cidade Negra estourou nas rádios com “A Estrada”, a voz de Toni Garrido entoava um verso que hoje, décadas depois, parece ter sido escrito sob medida para explicar um fenômeno sociológico brasileiro: “Você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui”.
Recentemente, dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, atualizaram os números da desigualdade. Houve quem considerasse que as mulheres brancas foram as “grandes vencedoras” das últimas décadas no mercado de trabalho. E, de fato, se olharmos para o topo da pirâmide, a conclusão é aritmética.
No entanto, como mulher negra e jornalista, meus olhos buscam nas planilhas aquilo que a tinta preta do jornal muitas vezes não destaca: a velocidade do movimento e a tração no terreno inclinado.
Ao dissecarmos os números apresentados, encontramos uma revolução silenciosa, operada por mães, filhas e avós que decidiram que o destino de subserviência não era uma sentença perpétua. Os dados mostram que entre 1982 e 2020, a renda das mulheres negras em relação à dos homens brancos – considerando os homens brancos como base 100 – saltou de 38% para 63.
Vamos pausar e respirar esse número.
Estamos falando de um avanço de 25 pontos percentuais. Para colocar em perspectiva, neste mesmo período, os homens negros — também vítimas do racismo estrutural, mas inseridos em dinâmicas de gênero distintas — avançaram apenas 7 pontos. As mulheres brancas, que partiram de um patamar mais confortável, mas, ainda assim, enfrentam barreiras sexistas, de 55% chegaram a 77%, um avanço de 22 pontos.
Matematicamente, quem mais correu, quem mais “caminhou” nessa estrada esburacada, fomos nós.
Dizer que esse salto de 25 pontos percentuais é sorte ou acaso seria um insulto à nossa história. Esse número é o resultado tangível da aposta massiva das famílias negras na educação de suas filhas. É o reflexo das mulheres que trabalham de dia e estudam à noite; das que se tornaram as primeiras de suas famílias a obter um diploma universitário; das que empreendem por necessidade e transformam essa necessidade em potência.
Enquanto a análise fria pode sugerir que ainda estamos na base e, dolorosamente, ainda estamos, ganhando 63% do que ganha um homem branco pelo mesmo trabalho ou posição, a análise humana revela uma força cinética impressionante. Nós partimos de muito mais longe. Nossa linha de largada foi desenhada séculos atrás com correntes, e décadas atrás com a vassoura na mão como única opção de carreira.
Sair de 38% de rendimento relativo para 63% em pouco mais de uma década não é apenas uma estatística de mercado; é uma ruptura de paradigma. É a prova de que, apesar do racismo, do sexismo e da dupla (muitas vezes tripla) jornada, a mulher negra é o sujeito político e econômico mais resiliente do Brasil atual.
Nós avançamos mais rápido percentualmente porque a nossa urgência é de sobrevivência. O nosso salto é o do desespero transformado em estratégia.
Não podemos, porém, cair na armadilha do otimismo ingênuo. A música continua: “Percorri milhas e milhas antes de dormir”. E ainda não podemos “dormir”, metaforicamente falando. O fato de termos alcançado 63% do rendimento do homem branco significa que ainda nos faltam 37% de dignidade salarial para sermos consideradas iguais.
A pirâmide salarial brasileira continua tendo cor e gênero muito bem definidos. O avanço de 25 pontos percentuais mostra que sabemos caminhar, que temos fôlego e que não paramos diante das barreiras. Mas também ilumina o tamanho do abismo que ainda nos separa do topo.
Celebrar esse avanço é necessário para honrar o esforço coletivo das mulheres negras brasileiras. É reconhecer que a nossa mobilidade social é fruto de sangue e suor, não de herança. Mas finalizar essa reflexão exige olhar para o horizonte.
Nós caminhamos muito para chegar até aqui. Provamos, com dados do IBGE, que somos capazes de acelerar o passo mesmo quando o vento sopra contra. Mas a estrada para a equidade real, aquela onde os 100% de paridade nos esperam, ainda exige que continuemos marchando. E nós vamos continuar.
