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Seguro e estabilidade jurídica

Ao recusar o capital de seguro de vida para aqueles que falecerem devido a acidente de trânsito ocorrido enquanto dirigiam embriagados, está-se destruindo a estabilidade jurídica dos seguros de vida. Os defensores da negativa da indenização agem como verdadeiros paladinos da sociedade abstêmia em prol da segurança no trânsito. Sustentam que a função do seguro de vida é contribuir para a redução dos acidentes e que reconhecer o direito do beneficiário do seguro é ser cúmplice de agressão à sociedade. Deixam de ver que o seguro de vida tem por função prover a vítima da perda de quem lhe dava esteio econômico, ou seja, prover o beneficiário do seguro.
Dizem que pagar o capital relativo ao falecido em estado de embriaguez é pagar por ato doloso, por crime. Mas não se dão conta de que se o crime é culposo, e não doloso, o seguro já o conforta há mais de século: seguro de responsabilidade civil. Diariamente, a cada minuto, uma seguradora brasileira paga indenização por uma lesão corporal ou um homicídio culposo, seja nos acidentes de trânsito, seja em outros casos.
Se alguém bebe para matar-se na condução de um veículo, deliberadamente, isso é ato doloso e, mesmo assim, seria um suicídio — e, passados dois anos (carência) da contratação, estaria coberto o falecimento pelo seguro de vida, por expressa disposição legal. Se o segurado bebe para matar terceiro, então é ato doloso e o seguro não cobre.
Gritam que contemplar os beneficiários do motorista ébrio que faleceu é como prestigiar o estuprador, o latrocida, o incendiário — mas isso é discurso enganoso. No mundo, nenhum estudo sobre a mortalidade para o seguro de vida considerou o evento embriaguez como algo a ser segregado para fins de cálculo do prêmio de risco. Nos textos da atuária, sem os quais os seguros de vida não existem, entre as funções utilizadas para a formulação das chamadas tábuas de mortalidade, as mortes acidentais sempre estiveram presentes. É a Lei de Makeham, que vem fazer fluir nos cálculos a mortalidade acidental. Nunca ninguém dali excluiu as mortes por uso de álcool, remédios, chás calmantes, nem aparelhos celulares, nem estojos de maquiagem. Só as mortes causadas em virtude da prática dolosa, da maldade e do crime.
Na minha experiência profissional. muitas vezes assisti ao pagamento de capital de seguro de vida em casos de falecimento ocorrido durante acidente em que o segurado encontrava-se embriagado. Ninguém se incomodava com o fato de estar-se pagando o capital pelo fato de o falecido achar-se embriagado quando conduzia um veículo ou perturbava o terceiro que dirigia.
O assunto, entretanto, tornou-se polêmico e ganhou muita publicidade com recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, cujo relator foi o ministro Ari Pargendler, que acabou prestigiando a tese segundo a qual a embriaguez seria uma agravante de risco objetiva, isto é, bastaria haver a simultaneidade entre embriaguez e acidente para que o beneficiário perdesse o direito ao seguro de vida.
A fiar-se nessa decisão, que espero não faça escola, basta haver embriaguez que, independentemente do nexo causal, será indevida a indenização ou o capital. A decisão, para o seguro de vida, é um verdadeiro monstro, tão assustador quanto o precedente do STJ que, no caso de perda total, condenou uma seguradora por toda a importância segurada, independentemente do efetivo prejuízo.
É verdade que o art. 768 do Código Civil diz que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”. Mas é o segurado que perde a garantia, e não o beneficiário que perde o direito ao capital segurado. Além disso, embora esse artigo esteja nas disposições gerais aplicáveis a todos os seguros, esse artigo cuida de instituto próprio dos seguros de danos e não se aplica, mundo afora, aos seguros de vida e acidentes pessoais, salvo raríssimas exceções.
Mesmo no campo dos seguros de dano, agravamento de risco é algo que vem para piorar o risco que ameaça o interesse garantido, não ocasionalmente, mas com constância. Mesmo utilizando-se a regra do agravamento para o seguro de vida, não há como encaixar o caso da embriaguez eventual.
Sem dúvida a embriaguez atrapalha o motorista, mas muitas vezes menos do que as noites que passamos sem dormir para terminar um trabalho, os momentos em que trocamos torpedos, e-mails e conversamos nos celulares, enquanto dirigimos, as nossas viradinhas de contramão relâmpago para evitar um perigoso e longo percurso, ou a medicação ingerida para relaxar. São todos atos ocasionais e estariam tecnicamente sob a mesma lógica de risco. Agravamento para a condução de veículos é o vício no álcool, não o bebê-lo circunstancialmente.
Por isso mesmo é que o Projeto de Lei do Contrato de Seguro (PL 3555/2004) traz uma preeito excluindo do seguro de vida a regra de agravamento, norma que está em inúmeras legislações estrangeiras, como o Código de Seguros francês. É bom sempre lembrar que há um século também se vociferava contra os seguros de responsabilidade civil. Seriam nulos porque garantiriam proteção para aquele que cometesse um ilícito. Por sorte, esses pretensos arautos da legalidade e da mortalidade perderam a mão. Milhões de vítimas indenizadas agradecem.

Fonte: Correio Braziliense

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