O papo furado ambiental
Vamos imaginar que a seleção brasileira ao disputar a próxima Copa do Mundo resolvesse assumir a bandeira da responsabilidade socioambiental. Imagine que o Dunga tivesse de deixar de lado o critério tradicional de convocar-os-melhores-talentos-com a bola e tivesse de escolher uma seleção que agradasse a critérios sociais e também fosse menos lesiva ao meio ambiente.
No equacionamento da questão social, inicialmente podemos pensar em começar com a criação de cotas étnicas. No caso da seleção brasileira, isso significa que brancos e índios precisam ser mais incluídos socialmente. Afinal, temos de desconstruir esse preconceituoso pensamento popular que apregoa que seleção brasileira boa é aquela na qual a maioria dos nossos craques é negra. Deveremos também começar a nos preocupar em reduzir a exclusão social que impede que classe média alta e riquinhos, que são em geral mais ruins de bola do que a meninada da baixa renda, entrem em campo. Afinal, a turma dos mauricinhos e intelectuais só consegue espaço quando é dona da bola. Não podemos tampouco negligenciar a exclusão social expressa no slogan “futebol é coisa de macho”. Assim, precisamos de cotas também para homossexuais, travestis e transexuais. E, claro, não podemos esquecer que já é tempo de promover a integração para portadores de deficiências físicas, portanto algumas vagas são desejáveis se nossa seleção quiser se destacar como politicamente correta.
Do ponto de vista ambiental, a seleção deve começar contratando uma consultoria que faça um levantamento do impacto ambiental da atividade esportiva. Certamente as viagens, a concentração, o calendário e a forma com que estádios serão utilizados, tudo isso deve ser objeto de EIA/Rimas, que devem considerar tanto aspectos locais quanto globais, causados pela prática do futebol. Afinal, até concerto de rock do Al Gore já foi acusado de provocar aumento da produção de CO2.
Dentro dessa perspectiva da responsabilidade social, a camisa da seleção deve ter algum tipo de mensagem ética que inspire um consumo mais responsável e racional do futebol como forma de entretenimento, da mesma forma que ocorre com o consumo do álcool e do tabaco. Afinal, já dizia o velho ditado de esquerda que o futebol é o ópio do povo. Além disso, como já reconhecem as mulheres há muito tempo, o hábito masculino de passar os fins de semana inteiros em frente da TV vendo esportes contribui seriamente para o aumento do sedentarismo, da obesidade e para a redução da capacidade masculina de raciocinar. Algo como mensagens do tipo “torça com moderação”.
Não sei se essa fórmula nos levaria a ser mais competitivos na Copa. Mas podemos fazer um lobby na Fifa para aperfeiçoar o regulamento de forma a criar uma pontuação que reflita a responsabilidade socioambiental das seleções.
Essa brincadeira, que pode parecer politicamente incorreta, é só para chamar a atenção para algo que, a meu ver, está fora de foco: a responsabilidade socioambiental corporativa. Vejo muita gente esclarecida e bem-intencionada dizendo que as empresas agora têm um triplo “bottom-line”. Agora, devem se esforçar também para produzir um balanço social e ambiental positivo. Em outras palavras: empresa que foca em lucro é uma besta-fera troglodita e desumana.
Vamos com calma. Não vamos fazer marketing enganoso. Negócios são um jogo altamente competitivo. A tal ponto que a inovação que as empresas buscam é sempre, no fim das contas, uma maneira de conquistar um diferencial competitivo que sirva como um monopólio virtual e temporário, que é o sonho de qualquer empresa e só é possível em mercados onde os consumidores são mantidos em cativeiro e a concorrência é indevidamente imobilizada.
O objetivo de uma empresa em uma sociedade aberta e democrática é, dentro do respeito estrito das leis, prestar um serviço ou fabricar um produto e lucrar com isso. Uma empresa não tem de ter cara de boazinha e ficar se preocupando em divulgar balanços sociais falando quantos portadores de deficiência são seus empregados, exaltando o porcentual de mulheres em cargos de chefia, ou quanto se gasta em filantropia ou em parcerias feitas com ONGs. Empresa não é instituição de caridade, tampouco de assistência social. Empresa não é governo nem ONG.
Empresa existe para dar lucro aos seus acionistas, donos e empregados, sem subsídios de governos, sem conseguir negócios na base da propina. Se uma empresa polui fora dos padrões permitidos pela lei, ela deve ser multada, deve recuperar o dano ambiental ou deve ser fechada. Uma empresa incapaz de concorrer em um mercado aberto, que não tenha capacidade de atrair os melhores talentos que a tornem competitiva e lucrativa, que viole leis ambientais, fiscais, de competição não tem direito a existir. Por mais que os seus balanços sociais sejam lindos e maravilhosos.
A história das corporações de negócios tem mostrado que são justamente as mais controversas empresas as que mais levantam o argumento da responsabilidade social corporativa. Empresas petrolíferas, a indústria do tabaco, fast-food, megaempresas que esmagam a concorrência e destroem a fina tessitura urbana de onde se instalam, essas são seguramente as que gastam os maiores orçamentos em ações e atividades de propaganda, publicidade, relações públicas e marketing de relacionamento. Não sejamos cínicos. Isso acaba sendo uma atitude construída para dizer à sociedade: “Olha, somos grandes e lucrativos, mas não somos tão maus quanto parecemos.”
Neste início de novos bravos tempos digitais, vivemos um mundo de competição globalizada de tal forma que qualquer coisa, sem exceção, pode ser feita de forma mais barata, mais rápida e com maior qualidade quando feita pela iniciativa privada. Não há mais razão para governos serem provedores de serviços de energia, serviços financeiros e bancários, de telecomunicações, tecnológicos, postais, de mídia e comunicação; governos não têm de fabricar coisas ou de operar e construir infra-estrutura, nem meios de transporte, sejam aeroviários, rodoviários ou ferroviários etc.
Neste contexto do mundo atual, empresas públicas e estatais, de forma geral, perderam qualquer razão de existir. Neste contexto, sou um privativista feroz. Mas não advogo uma visão de que o setor privado deve ser visto com leniência pela sociedade. Ficar clamando por mais ética nos negócios é conversa de sacristão. Nós, seres humanos, somos essencialmente jogadores. Nossas atividades sociais são, no fundo, jogos que devem seguir leis e regras. De preferência, simples e poucas, com punição assegurada no caso de transgressão. Olhe para o futebol: mesmo craques, como Maradona, vão fazer gol de mão e, como Pelé, darão cotoveladas se não estiverem sendo monitorados e punidos.
A governança corporativa, sim, é ponto capital. A obrigação de passar informações fidedignas ao mercado sobre suas operações e planos do ponto de vista mercadológico, econômico, financeiro e fiscal não deve, em nenhuma hipótese, ser confundida com o papo de responsabilidade socioambiental. Causas são objeto e missão de organizações sem fins lucrativos, as ONGs; políticas e interesse público para a sociedade como um todo são objeto e missão de governo e suas organizações. Empresas não são boazinhas nem más. Qualquer tentativa de transformar empresas em pessoas jurídicas simpáticas é objeto de “branding” e de ações de propaganda, publicidade e relações públicas. Empresas são organizações inventadas para produção econômica e devem ser vistas como tal. Ponto. Mais do que isso é papo para enganar o consumidor e pessoas de boas intenções e boa-fé.
Fonte: Valor