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O impacto na saúde física e mental da violência contra a mulher durante o período da pandemia do COVID-19

O contexto pandêmico da COVID-19 impactou diversos setores da economia o que, consequentemente, atingiu milhares de pessoas ao redor do mundo. No Brasil não foi diferente. A economia atingiu toda uma população que para manter-se em segurança, precisou ficar em casa. E este ambiente, até então seguro, não foi nada para as mulheres.  

“De acordo com o levantamento, 1 em cada 4 mulheres brasileiras acima de 16 anos (24,4%), ou seja, cerca de 17 milhões de mulheres, afirmaram ter sofrido alguma forma de violência durante a pandemia do covid-19, especificamente nos últimos 12 meses. Ainda, 5 em cada 10 brasileiros (51,1%) apontaram ter presenciado algum tipo de violência contra a mulher no seu bairro ou comunidade durante o último ano.” [Movimento Não Se Cale – Pesquisa Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisas Datafolha, 2021]¹  

Os dados levam à urgência na implementação de Políticas Públicas quanto ao enfrentamento da violência contra a mulher que atingem diretamente não apenas a saúde física desta população, mas também sua saúde emocional.

Um dos instrumentos que se destaca no enfrentamento da violência contra a mulher é a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) ², que determina que é de responsabilidade da família, sociedade e poder público que as mulheres tenham acesso aos seus direitos, além de qualificar e definir suas formas (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral). Ainda, destaca a importância de um atendimento multidisciplinar compostas por profissionais do âmbito psicológico, jurídica e da saúde.  

Quanto à saúde física é necessário garantir que essa mulher tenha acesso aos direitos básicos: cuidados com suas lesões caso as tenha em hospitais ou UBS’S, bem como assistência social que auxilia a vítima tanto em centros de acolhimentos sigilosos, como também auxílios com aluguel, por exemplo. Isto pode acontecer por meio do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), CRM (Centro de Referência a Mulheres Vítimas de Violência), CDCM (Centro de Defesa e de Convivência da Mulher), entre outros órgãos de saúde e assistência social vinculados ao SUS (Sistema Único de Saúde).

Nesses lugares já é possível ter um primeiro contato com o apoio psicológico para essas vítimas, visto que nestes centros há um preparo para a recepção dessas mulheres que se encontram vulnerável no momento da denúncia e acolhida.

Ademais, é importante citar que este é um trabalho delicado e de longo prazo, já que as mulheres tendem a demorar para denunciar devido ao medo e baixa autoestima para buscar e manter a ajudar. Por essa razão, as mulheres são julgadas através de mitos sociais como pessoas que gostam de ser agredidas ou que “fazem corpo mole” frente à agressão. Nestes casos, o trabalho terapêutico com as vítimas consiste na conscientização e restauração da autoestima.   

No cuidado com a mulher, é necessário conscientizá-la sobre o ciclo da violência que consiste em três etapas principais: Fase da Tensão (aqui inicia-se os insultos e ameaças, cônjuge demonstra raiva e a relação fica instável); Fase de Agressão (descontrole do cônjuge e agressão violenta); e Fase da Lua de Mel (cônjuge demonstra arrependimento, pede perdão e promete mudanças).

Figura Ciclo da Violência ³

Neste primeiro momento, é imprescindível que no trabalho com a vítima entenda que há uma dificuldade no rompimento deste ciclo, pois representa um reflexo de uma sociedade patriarcal e de cultura sexista, isto é, reafirma-se que o espaço da mulher é sempre de obedecer, cumprir regras estipuladas por homens e que estas não são autoras de sua própria história.

Isso facilita a compreensão de que quando se depara com as mulheres, estas demonstram uma carga de culpa após este ciclo vicioso: é culpada por não permitir que o homem violento permaneça na casa, afastando-o dos filhos; culpada por precisar trabalhar mais para manter o básico em casa. Ou seja, a mulher é encarada com culpa em todos os aspectos que a circunda. É possível ter uma autoestima depois de tantos apontamentos que deprimem?   

Dito isto, o trabalho com essas mulheres requer – além da conscientização dessas etapas do ciclo da violência – um resgate de suas potencialidades e de suas qualidades. Pensar em uma vida que antecedeu ao crime e refletir em possibilidades de não apenas restaurar, mas também remodelar. Relembrá-la de que é possível sim ser amada sem ser agredida, dar uma nova perspectiva sobre o amor.

Estas atividades podem acontecer por meio de atendimentos psicológicos, terapias em grupos e oficinas, por exemplo. Nas sessões de psicoterapia é importante conversar sobre o ocorrido, buscar maneiras de ressignificar sua própria vivência, entender quais foram seus gatilhos e buscar novas perspectivas de vida, como um trabalho novo, mudança de cidade, novos ciclos de amizade e rotinas de autocuidado.

Já as terapias em grupo permitem que no compartilhar, as vítimas possam se identificar e sentirem seguras para reviver, relembrar com o objetivo de dar um novo significado para essas vivências. Questões que podem ajudar nessas reflexões diz respeito neste resgate de si: Quem sou eu? O que eu fui? Quem eu posso ser a partir de agora? Quais planos eu tenho para mim? Como é ser mulher na sociedade que eu vivo? Como posso me sentir segura de novo?  

Por meio dessas atividades e perguntas como as exemplificadas acima, as mulheres podem ter um espaço para avançar e não mais permanecer presa nessas amarras. Muito destes trabalhos ocorrem em rodas de conversa, mas também com atividades lúdicas como artesanato, teatro, música, desenhos, argilas, entre outros.

É válido ressaltar que também há um trabalho pertinente com os agressores, visto que o objetivo não é apenas punir, mas tratar os danos por meio de uma justiça restaurativa. O Ministério Público, em 2017, criou um programa denominado Programa Tempo de Despertar 4 que consiste justamente nessa perspectiva de reaver os danos nos agressores. Para este público, há grupos reflexivos e informativos que acontecem em universidades, por exemplo, o que permite ter um outro olhar para estes homens que são socialmente funcionais.  

Diante destes fatos, é imprescindível políticas públicas que promovam educação, igualdade de gênero e, principalmente, fiscalização destas leis. Ainda, é necessária uma ampliação no cuidado das vítimas quanto ao acesso à educação, saúde e tratamento físico e mental. Com todo este trabalho multidisciplinar e com políticas públicas pertinentes, é possível vislumbrar uma sociedade que cuida de suas mulheres e romper, efetivamente, com o ciclo da violência.

¹ https://www.naosecale.ms.gov.br/violencia-contra-a-mulher/

² http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm

³ https://www.tjpr.jus.br/web/cevid/ciclo-violencia

4 https://www.saopaulo.sp.leg.br/mulheres/legislacao/programa-tempo-de-despertar/     

Beatriz Fernandes

Psicóloga, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), atua na área clínica há 2 anos com foco na perspectiva psicanalítica. Além disso, concluiu curso em Harvard University no Centro de Saúde e Direitos Humanos (Center for Health and Human Rights).

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