O capitalismo sob suspeita
As Bolsas de Valores têm um papel fundamental de fomento para o crescimento econômico. Graças ao mecanismo de venda de pequenas cotas do capital das companhias – as ações -, elas proporcionam às empresas o financiamento de investimentos que permitem o desenvolvimento social e a distribuição de renda, por meio da criação de empregos.
No entanto, nos últimos dez anos, os Estados Unidos foram palco de episódios envolvendo o mercado financeiro que colocam em xeque o modelo capitalista como ele é hoje. É possível presenciar com certa – e incômoda – regularidade momentos de grande volatilidade nos mercados de ações, causadas pelo crescimento rápido nos valores dos ativos, para, em curto período de tempo, esses mesmos papéis perderem sustentação repentina, virando pó.
Foi assim com o estouro da bolha das empresas de internet, as chamadas ponto.com. O mesmo acontece agora com a crise no mercado imobiliário americano. Ainda que esses movimentos façam parte da própria natureza das aplicações nos mercados de capitais – que pressupõem riscos -, eles têm se tornado cada vez mais comum. A falência da Enron, ocorrida em 2001, já havia oferecido sinais de que algo estava errado. No entanto, analistas diziam que o mercado aprendera com os erros e que pequenos ajustes seriam feitos. E tudo voltava ao normal – até o surgimento de uma nova bolha, para que todo mundo esquecesse a velha lição.
O fato é que a recente crise financeira causou um abalo muito grande na base de todo o sistema financeiro. Esta crise – provocada por uma sucessão de operações que ambicionavam o lucro rápido especulativo e de curto prazo, sem o freio de uma regulamentação mais rígida – teve início a partir de operações financeiras de varejo que ofereciam créditos imobiliários para pessoas de baixa renda, sem a exigência de pagamentos de entradas. Esses empréstimos foram concedidos sem garantias sólidas, além do próprio imóvel financiado, e ficaram conhecidos como créditos Ninja (Non Income Non Job and Assets, algo como Sem Receita, Sem Emprego e Ativos).
Estes créditos foram concedidos na expectativa de que o próprio imóvel financiado fosse se valorizar, o que aumentaria o valor da garantia e serviria, inclusive, para a ampliação da linha de crédito em operações futuras para o mesmo devedor. Ainda que isso fosse possível, os analistas de crédito não se debruçaram sobre a hipótese de, um dia, a bolha imobiliária estourar. Até porque para muitos a alta no mercado imobiliário era uma tendência – e não uma bolha.
Esses créditos podres, de propriedade ou garantidos pelas companhias Fannie Mae e Freddie Mac, foram negociados com bancos centrais estrangeiros, que queriam ter posições em dólar que dessem um retorno maior do que os títulos do governo norte-americano e viessem sob o carimbo de AA ou AAA dados pelas principais agências de rating do mundo.
Por outro lado, a seguradora AIG oferecia ao mercado seguros contra o default (não-pagamento) desses créditos, baseando-se nos ratings dados a esses papéis. Para garantir o pagamento destes seguros, a AIG precisaria dispor de uma reserva cujo tamanho cresce à medida que cai a avaliação de crédito da seguradora. Desta forma, quando as instituições financeiras exerceram suas opções, exigindo o pagamento dos seguros, não havia recursos para honrá-los. Isso gerou um efeito em cascata que derrubou o valor de mercado destas instituições, já que os investidores se apressaram para vender seus papéis. Esse cenário se agravou ainda mais com a redução drástica da liquidez no mercado e com as baixas contábeis dessas enormes perdas.
Nesse momento econômico, a intervenção do Federal Reserve (Fed), o Banco Central americano, foi providencial, pois a quebra da AIG causaria um colapso financeiro de repercussão mundial jamais visto. E o cenário poderia ser pior, já que o agravamento da crise criaria sério problema para os EUA continuarem financiando seus déficits orçamentário e comercial.
Assim chegou ao fim a era dos bancos de investimentos. O Bear Stearns foi adquirido pelo JP Morgan Chase. O Merrill Lynch foi adquirido pelo Bank of America pelo equivalente a 30% de seu último valor de pico e o Lehman Brothers quebrou. Os dois gigantes que sobraram, Goldman Sachs e Morgan Stanley, serão convertidos em bancos múltiplos e deixarão de ser somente bancos de investimentos. Com a medida, deverão diminuir o risco de volatilidade de seus ativos, além, é claro, de terem de se submeter a um acompanhamento mais próximo das entidades reguladoras americanas.
O momento atual é tão particular que até os candidatos à presidência dos EUA, o republicano John McCain e o democrata Barack Obama, estão com discurso similar, no qual clamam por uma maior regulamentação do mercado financeiro. Regulamentação essa que os Wall Streeters nunca quiseram, pois, segundo eles, cria empecilhos e reduz a competitividade do mercado. Para corroborar o argumento, dão o exemplo da Bolsa de Valores de Nova York, a NYSE, que, após a promulgação da Lei Sarbanes-Oxley, passou de primeira a terceira Bolsa no mundo em número de IPOs.
O consenso é que essa crise levará ao aumento da regulamentação pelo governo dos EUA, na tentativa de, em médio prazo, fazer com que a Bolsa volte ao seu papel de financiadora do crescimento econômico e traga de volta a confiança dos investidores comuns. Hoje, os analistas acreditam que, após esse episódio, Wall Street não será mais a mesma. Só não sabemos se para sempre ou até a próxima bolha.
Fonte: Jornal do Commercio