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Ler Literatura é ler-se

O acesso à literatura – à ficção e ao discurso poético – é um elemento libertador da alma humana. Tal como um caleidoscópio, em cujo fundo há fragmentos soltos de vidros coloridos que produzem um número inimaginável de combinações, a interpretação de uma obra literária é infinita, esclarecedora, livre e inesgotável.

Essa relação particular do homem com os mais diversos assuntos não apenas o habilita a se colocar em relação ao outro e ao mundo, mas também a questionar dogmas.

A criatividade e a fantasia permitem ao homem transcender o seu cotidiano, fazendo-o especular, inferir, apreender, e não apenas e, passivamente, aprender. A busca do auto-conhecimento e do nosso eu interior têm na literatura uma fonte inesgotável de recursos e possibilidades. É onde nos confortamos, reconhecendo nossas emoções triviais e conflitos, éticos e entre gerações, repetidos na eternidade. É onde podemos ancorar a trivialidade de nossas vidas.

As próprias preferências de leitura já revelam a nossa personalidade. Diferentes temas instigam o ser humano a realizar diferentes incursões no vasto manancial literário, não sendo esse constituído de informações atualizáveis ou mensuráveis.

Desnecessário mencionar que textos didáticos são essenciais à formação acadêmica do indivíduo; entretanto seus ensinamentos são pontuais e objetivos. O ser humano necessita primeiramente se conhecer e se acreditar, para reconhecer seus potenciais, estabelecer critérios e preferências, conquistando a tranqüilidade e o estofo emocional necessários.

A leitura de textos literários é o exercício de interagir com o mundo, de compreender a vida, a morte e a inexorabilidade do tempo, legitimando, assim o espírito humano. “Todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo”, disse Marcel Proust (1871-1922).

A prática da leitura, como qualquer outra, exige treino. Trata-se de um processo contínuo que se originou em nossa alfabetização; primeiro as letras, depois os sons, as palavras, as frases, os primeiros livrinhos coloridos. Com o passar do tempo, temos acesso então aos clássicos. Anos mais tarde, optamos por reler aquela – e não aquela outra – obra, e somos apresentados, em primeira mão, a aspectos que nos passaram obscuros na primeira experiência. Temos um prazer diferente – não maior ou menor. Mais uma inclinação do caleidoscópio. Identificamos novas leituras, identificamos novos recortes, sonhamos e interagimos de forma diferente, são suscitadas em nós inspirações e reflexões também diferentes. Constatamos que o prazer em ver outras comportas serem abertas pode ser surpreendentemente infinito, com uma sucessão de pontos-finais efêmeros.

Os clássicos têm ainda a característica ímpar de incutir no leitor uma semente eternamente profícua e recorrente, a despeito de ele se lembrar claramente ou não de seu enredo, após muitos anos.

Literatura é arte, literatura é prazer, literatura é meio. A boa literatura é capaz de estabelecer uma relação pessoal com o leitor, mas não necessariamente positiva: “O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir você próprio em relação e talvez em contraste com ele”, afirmou Italo Calvino, em seu Por que ler os clássicos, Cia. das Letras, 1993.

Literatura é o veículo mais importante na transmissão de cultura, o maior patrimônio cultural da humanidade, experimentada de forma introspectiva e nas ações do ser humano.

Lucia Cordeiro

Escritora.

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