Histeria coletiva com AIG obscurece verdades óbvias
Em setembro passado, o governo dos Estados Unidos começou a repartir as primeiras parcelas dos US$ 173 bilhões que emprestaria ao American International Group (AIG). Uma grande parte foi diretamente para os bancos que haviam comprado seguros da AIG para proteger-se contra a inadimplência de empresas e hipotecas – bancos estrangeiros como Deutsche Bank e Société Générale, mas também locais, como Goldman Sachs e Bank of America.
As autoridades do governo dos EUA, então, fizeram o possível para disfarçar do público o que haviam feito exatamente e por quê. Chegaram ao ponto de declarar inacessível aos contribuintes a lista definitiva dos receptores dos fundos dos próprios contribuintes. Por enorme mérito da mídia – ou melhor, de punhado de repórteres aplicados, especialmente Gretchen Morgenson, do “The New York Times” -, evitou-se que as autoridades se safassem.
Esta incrível cena quase não desencadeou nenhuma reação política. Na prática, o contribuinte dos EUA havia pago as dívidas de jogo da AIG. O receptor final do dinheiro não foi a AIG, mas o Goldman Sachs e o Deutsche Bank, entre outros.
Uma grande parte dos bilhões obviamente terminou, de uma forma ou de outra, nos bolsos de seus funcionários e acionistas. Alguns poucos do Congresso, no Capitólio, resmungaram e lamentaram, mas há um consenso popular sobre a prudência de se transferir US$ 173 bilhões dos contribuintes para os financistas.
Agora, quando a mesma AIG paga US$ 165 milhões em bônus – dinheiro que é obrigada a pagar contratualmente – todo o sistema político enlouquece. O presidente Barack Obama diz que encontrará uma forma de anular os contratos e pegar o dinheiro de volta. Um senador dos EUA afirma que os funcionários da AIG deveriam matar-se.
Cada célula dos órgãos políticos revoltou-se em recriminações; se há uma coisa neste momento em Washington que se pode fazer sem despertar discussões é atacar a ética do pagamento de bonificações da AIG.
Com exceção de Andrew Ross Sorkin, do “The New York Times”, não ocorreu a ninguém dizer que: a) a grande maioria dos funcionários da AIG tem tão pouco a ver como você ou eu com as perdas catastróficas e a assunção quase criminosa de riscos da seguradora; b) os mais qualificados desses funcionários podem encontrar facilmente emprego nos concorrentes da AIG; e c) se o governo insistir em punir esses funcionários mais qualificados, eles compreensivelmente pedirão demissão e deixarão para trás uma empresa menos viável do que já é e com menos chances de devolver o dinheiro dos contribuintes.
E ainda – ah, sim – se o governo puder arbitrariamente quebrar contratos feitos pelas empresas nas quais assumiu participação, ninguém em sã consciência voltará a fazer contratos com essas firmas. Então, todos os bancos em que o governo possui investimento sairão prejudicados.
Podemos observar, a partir deste episódio, várias verdades gerais em relação à crise financeira e às tentativas para solucioná-la:
1) Para o processo político, todos os grandes números parecem iguais; acima de certa quantia, o dinheiro torna-se meramente simbólico. O público geral não tem percepção para sentir o peso relativo de US$ 173 bilhões e de US$ 165 milhões. É possível gerar tanta ação política e irritação pública com milhões quanto com bilhões. Talvez, indo até mais longe: quanto maior o número, mais abstrato se torna e, portanto, mais fácil de ser ignorado. (Os trilhões que devemos a estrangeiros, por exemplo.)
2) À medida que a crise financeira evolui, sua moral vem sendo simplificada de forma grotesca. No início desta crise era uma confusão. Os financistas, em Wall Street, portaram-se horrivelmente, mas os americanos médios também. Milhões de pessoas captaram empréstimos que não deveriam ter tomado, normalmente não por terem sido enganados ou defraudados, mas porque foram ambiciosos e gananciosos: queriam ter coisas que não haviam ganhado o direito de comprar.
Mas quando o dinheiro do contribuinte entrou na jogada a história mudou: agora, contribuintes inocentes são explorados por horríveis financistas de Wall Street. O sujeito que deixou de pagar as hipotecas de seis casas especulativas no deserto de Nevada tornou-se um cidadão indignado com os bônus pagos aos funcionários da AIG que tentam arrumar a bagunça provocada por sua inadimplência.
3) A complexidade das questões cruciais da crise paralisa a capacidade dos processos políticos de encará-las de forma inteligente. Não tenho dúvidas de que, quando esta saga terminar, todos saberemos o que ocorreu a cada centavo dos US$ 165 milhões em bonificações pagas e cada um de nós terá sua opinião sobre a moralidade da questão.
Por outro lado, tenho sérias dúvidas se alguma vez entenderemos a moralidade do pagamento de US$ 173 bilhões, um problema muito mais grave. Por exemplo, o Goldman Sachs, que recebeu cerca de 8% do total, declarou publicamente que, para eles, o dinheiro era uma questão indiferente, já que o banco de investimento havia se protegido contra uma possível quebra da AIG – fazendo apostas financeiras contra a AIG.
Isto sugere que, antes do colapso da AIG, estava claro, pelo menos para um participante do mercado, que a seguradora de rating “AAA” comportava-se de formas que poderiam levar a sua quebra – o que significa dizer que não havia um local realmente seguro para reduzir o risco dessas apostas. (Então, por que resgatar os que as fizeram?)
Também sugere que era indiferente para o Goldman Sachs se a AIG morria ou vivia, pois estava protegido em ambos os casos. (Então, por que resgatá-la?)
Desde o início da crise, pergunto-me por que o governo não conseguiu encontrar nem a disposição, nem a forma para atacar a raiz do problema: as pessoas que emprestaram dinheiro para comprar residências que não deveriam ter comprado.
Agora, acho que compreendo. Seria simples demais. As pessoas conseguiriam entender o que está sendo feito e ficariam escandalizadas se o governo fizesse vários pequenos pagamentos ao sujeito logo ali mais à frente, em sua mesma rua, que não os merece. É muito melhor despejar trilhões em empresas obscuras, cujo funcionamento interno ninguém ainda realmente compreende.
Michael Lewis é colunista da “Bloomberg News”.
Fonte: Valor