Cenário aponta para retomada lenta e carteiras mais enxutas
A indústria de seguros iniciou 2020 com motivos para comemorar. O avanço nominal de 12,1% nas receitas em 2019 emulava o desempenho do período 2009-2014, em que crescimentos anuais de dois dígitos eram comuns. No ano passado, o setor surfou a onda de uma economia que, embora com a força de uma marola, saiu do buraco da recessão que teve início em meados da década, incentivado pelo bom desempenho de ramos como vida e previdência. A expectativa para 2020 era, se não repetir o desempenho, ao menos entregar resultados bem próximos a isso.
Mas havia uma pandemia no meio do caminho. As medidas de isolamento social implementadas a partir de março derrubaram o fluxo de transporte de mercadorias, fecharam o comércio, deterioraram as estatísticas de emprego e corroeram a renda de 63,9% dos brasileiros, conforme a Fundação Getulio Vargas (FGV). As seguradoras sentiram o baque. Balanço da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) mostra que a receita em prêmios e contribuições (excluídos DPVAT e saúde suplementar) caiu 3,5% no primeiro semestre, em relação a igual período do ano passado, para R$ 121,1 bilhões.
O “antes e depois” da covid-19 tornam os efeitos da pandemia mais claros. Considerando apenas o primeiro trimestre, as receitas cresciam 7,8% sobre 2019. No segundo trimestre versus o mesmo intervalo do ano passado, a arrecadação recuou 13,8%. Abril, o primeiro mês “cheio” da quarentena, foi considerado um dos piores da história recente do segmento. Houve aparente melhora em maio, com crescimento de 11,4% na arrecadação sobre abril, mas os números precisam ser relativizados, na opinião de Marcio Coriolano, presidente da CNseg. “Em grande parte isso foi influenciado pelos produtos previdenciários. Sem PGBL e VGBL, haveria queda de 2,3%.”
A melhora em carteiras como previdência, automóvel e vida trouxe um alívio em junho, mês em que as receitas não apenas avançaram em relação a maio (32,9%), mas também sobre o quinto mês de 2019 (5,9%). Ainda é cedo, entretanto, para cravar que o pico da crise tenha ficado para trás. Na base móvel dos últimos 12 meses até junho, o setor ainda mantém vigor, por conta de efeito de carregamento estatístico: alta de 6,1%. “O Brasil vive um período duro, com um consumidor com poder aquisitivo menor. O país empobreceu”, afirma Coriolano.
O cenário é desafiador, mas está longe de ser terra arrasada, afirma o presidente da Bradesco Seguros, Vinicius Albernaz. O raciocínio é simples: embora a pandemia tenha ocasionado uma queda significativa nos volumes de arrecadação em alguns ramos relevantes, como automóveis, houve compensação com uma menor incidência de sinistros. “Isso se refletiu positivamente nos balanços de muitas seguradoras”, completa. O Brasil vive um período duro, com um consumidor com poder aquisitivo menor.
O país empobreceu” De fato, a pandemia contribuiu com a redução atípica nos índices de sinistralidade no segmento de danos e responsabilidades, de 55,8% para 49% nos primeiros semestres de 2019 e 2020, influenciada pela redução de acidentes e roubos de carros, conforme a CNseg. Mesmo em saúde houve redução da sinistralidade com o adiamento de procedimentos eletivos e exames e consultas médicas em meio à pandemia.
Um cenário que ajudou na melhora do Índice Combinado (IC), indicador que soma o índice de sinistralidade com o de despesas – quando abaixo de 100%, o IC indica que a seguradora teve lucro operacional. O setor provou sua resiliência, demonstrada no bom desempenho na comparação semestral entre 2019 e 2020, ainda que em ramos com menor participação relativa na arrecadação, como grandes riscos (+69,4%), marítimo/aeronáutico (+28,4%) e rural (+25,2%).
“Os seguros de pessoas sofreram mais, mas os seguros corporativos performaram bem no geral. O seguro cyber teve aumento de cotações e contratações. Conseguimos compensar a falta de novos negócios com aumento de taxas nas renovações”, afirma Fabio Oliveira, presidente da AIG no Brasil. Os ramos dependentes de emprego e renda sentiram os maiores impactos da pandemia.
O maior exemplo é o seguro de automóvel, a maior carteira do setor no segmento de danos em volume de prêmios, que fechou o semestre com queda de 5,8% na arrecadação, conforme a Superintendência de Seguros Privados (Susep). O ramo é especialmente sensível à venda de veículos novos, que registraram um tombo de 38,2% na comparação semestral, aponta a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). A estimativa da entidade é que as vendas totalizem 1,6 milhão de unidades de 0 km em 2020, o patamar mais baixo desde 2005.
Ramos que entregaram forte crescimento em 2019, como vida e previdência privada, também foram atingidos pela recessão. No ano, até junho, os resgates subiram e as contribuições caíram nos planos de previdência complementar dos tipos PGBL e VGBL. Ainda que a pandemia não conte a história completa, houve uma corrida de brasileiros por liquidez para fazer frente a um cenário de renda comprometida e orçamento familiar apertado. Seguradoras e resseguradoras tiveram que lidar também com o pagamento de indenizações por efeito direto da pandemia, ainda que em poucas linhas de negócios – a maioria das apólices exclui eventos como pandemias das coberturas.
Um exemplo são as coberturas que garantem indenização às empresas pela paralisação dos negócios (lucro cessante). As apólices estabelecem como gatilho para o acionamento da cobertura a ocorrência de um dano físico, como um incêndio, que leve a perda de receitas.
A interrupção de um negócio em virtude da pandemia, assim, não é coberta na maioria das apólices. Outros ramos, entretanto, foram mais pressionados, como o seguro-viagem e saúde. Ainda que o impacto da covid-19 na rede privada tenha sido menor, na comparação com a rede pública, as seguradoras de saúde tiveram gastos adicionais para cobrir a demanda por exames, tratamentos e internações decorrentes da covid-19.
Em março, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) incluiu o exame para detecção da doença no rol de procedimentos obrigatórios. Mesmo sem obrigação legal, muitas seguradoras pagaram indenização por morte aos beneficiários de segurados mortos.
Nas linhas financeiras, uma carteira impactada é a de seguro de crédito, produto que protege o comprador em um eventual calote em um contrato de compra e venda. No Brasil, o seguro tem baixa penetração e é operado por apenas seis empresas, a exemplo de Euler Hermes, Coface e AIG. “Houve muita prorrogação de prazos pelas seguradoras e acordos entre compradores e vendedores. Pensávamos que seria uma catástrofe de sinistros, mas isso ainda não ocorreu”, diz Tatiana Moura, diretora de crédito e garantia da Marsh Brasil.
É consenso no mercado que ainda é difícil mensurar os impactos futuros da pandemia. Embora o pior das projeções pareça ter ficado para trás, a expectativa é que o Produto Interno Bruto (PIB) recue 5,52% em 2020, de acordo com a mais recente projeção do boletim Focus, do Banco Central (BC). Houve muita prorrogação de prazos e acordos entre compradores e vendedores. A catástrofe esperada não ocorreu”
Outro indicador pouco animador é o de emprego. A taxa de desemprego atingiu 13,3% ao fim do segundo trimestre, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Tudo indica que não será uma retomada em V”, diz Gabriel Portella, presidente da SulAmérica. “No Brasil, nunca podemos dizer que o pior já passou. Sentimos em algumas das empresas seguradas a redução do número de beneficiários em saúde, mas os sinais não são desesperadores. Será uma retomada lenta.”
Uma preocupação é que, em um momento de receitas comprimidas, a flexibilização do distanciamento social tende a retomar procedimentos eletivos na saúde e levar mais carros para as ruas, com incremento natural da sinistralidade. “Não temos visibilidade, mas a tendência é de recuperação de aviso de sinistros em velocidade superior à da retomada de prêmios”, diz Albernaz, da Bradesco. Como precaução, a seguradora formou provisões de R$ 1,1 bilhão no primeiro semestre, à espera de uma retomada da sinistralidade e um cenário econômico desafiador.
Em um ambiente de deterioração da renda e emprego, as seguradoras foram flexíveis nas condições de pagamento, com maior oferta de descontos, alongamento de prazos e parcelamentos e em alguns casos, postergação de reajustes. A SulAmérica represou os reajustes em maio, junho e julho para os planos de saúde individuais e PME.
A Allianz Seguros facilitou as condições de pagamento, com parcelamentos em dez vezes sem juros em ramos como automóveis e PME. “Muitos clientes buscaram essa flexibilização e decidimos manter as condições até assegurarmos que a situação melhore”, diz o presidente da companhia, Eduard Folch.
Os movimentos deixam evidentes a preocupação com a renovação das apólices e a tentativa de manter os clientes em carteira em um momento de receitas mais enxutas. “A renovação virou um ativo preciosíssimo e será assim daqui em diante. No Brasil, a renovação média de uma seguradora é de 65% a 70%. Nos EUA, de 90%. Cliente novo será mercadoria rara nos próximos meses”, afirma Murilo Riedel, presidente da HDI Seguros.
A pandemia também levou as seguradoras a intensificar as jornadas de transformação digital, com o lançamento ou aprimoramento de uma série de produtos, serviços e funcionalidades. Tecnologias como machine learning e inteligência artificial (IA) permitiram ganho de escala com cotações e vendas por canais digitais e facilitaram o aviso de sinistros e pagamentos de indenizações por meio remotos ou a autovistoria e autoinspeção veiculares via apps, para citar alguns exemplos. A tendência parece ser de recuperação de aviso de sinistros em velocidade superior à da retomada de prêmios” “A covid-19 antecipou cinco anos de história para nós”, resume Riedel.
A seguradora iniciou o projeto de transformação digital em 2017, o que consumiu R$ 300 milhões em investimentos. Com a pandemia, antecipou a segunda parte da jornada, um projeto de revisão dos processos de relacionamento com corretores, clientes e prestadores de serviços por canais digitais que deveria ser finalizado em 2025. “A rede de 24 mil corretores teve uma curva de aprendizagem gigantesca na pandemia com o uso de ferramentas tecnológicas.
Houve melhoria tanto nas renovações quanto nos timings das ofertas”, diz Riedel. Em maio, a seguradora e a gestora Redpoint eventures investiram US$ 6,5 milhões na startup Accountfy, que atua com digitalização das áreas financeiras das empresas. “Acreditamos que 25% dos negócios da HDI serão gerados pelo ecossistema até 2025, em ramos ligados ou não a seguros. Hoje, as parcerias respondem por 5% da arrecadação” diz.
A Allianz Seguros lançou um programa para otimizar a relação com corretores e clientes, o que inclui declaração de sinistros pela internet. Durante a pandemia, a estratégia digital contribuiu para os bons resultados operacionais no primeiro semestre. A arrecadação da carteira de automóveis cresceu 12,5% e a da residencial avançou 47,1%, em relação a igual período do ano passado. “A digitalização impactou positivamente nos resultados. O cenário coincidiu com a mudança de alguns produtos, mais eficientes e simples de contratar, com patamares de preços mais ajustados, em particular de automóveis”, afirma Eduard Folch.
Na SulAmérica, os investimentos em novas tecnologias realizados a partir de 2015 no app de saúde colheram os frutos durante a pandemia. Em fevereiro, foram registrados 500 atendimentos a distância na plataforma de telemedicina “Saúde na Tela”, números que chegaram a 68 mil em junho. “Também ampliamos a rede de médicos, o que trouxe alternativa de renda para os profissionais se manterem ativos, mesmo à distância”, afirma Gabriel Portella.
A pandemia tampouco impediu que o mercado interrompesse a rota de reposicionamento que impulsionou as transações de fusão e aquisição (M&A, na sigla em inglês) nos últimos três anos, com empresas adquirindo concorrentes ou vendendo carteiras não-prioritárias para companhias que se concentraram em áreas de maior expertise.
O fenômeno também inclui joint-ventures, vendas cruzadas de produtos e parcerias, um movimento que Marcio Coriolano, da CNseg, batizou de “revolução silenciosa” do mercado de seguros.
Uma atividade econômica debilitada, margens apertadas em um cenário de juros baixos e a necessidade dos players de aumentar as fontes de receita, racionalizar custos, acessar novos mercados e acelerar a estratégia de inovação tecnológica explicam essas movimentações. Os exemplos se avolumam. Em 2018, a Porto Seguro anunciou parceria estratégica de longo prazo com a AIG para comercializar produtos como D&O e responsabilidade civil (RC) para o segmento PME.
Outro acordo, firmado em 2019, prevê a utilização da base de corretores da HDI para a comercialização de seguros de vida e acidentes pessoais da Icatu. A Liberty Seguros renovou em julho parceria com o Banco Inter que garante a exclusividade na distribuição de seguros pelo prazo de 15 anos. “O potencial do mercado brasileiro, ainda subpenetrado, explica essas movimentações”, afirma Portella, da SulAmérica. Na negociação mais recente, sacramentada em julho, a SulAmérica vendeu as operações de automóveis e de ramos elementares à Allianz por R$ 3,18 bilhões. O acordo incluiu a transferência das carteiras, tecnologias, processos e 1.700 colaboradores. A SulAmérica passa a se posicionar estrategicamente como uma seguradora de riscos pessoais (saúde, odonto, vida, previdência e gestão de ativos).
Para a Allianz, a aquisição acrescenta 1,6 milhão de veículos na carteira e catapulta a companhia do oitavo para o segundo lugar no ranking de seguros de automóveis – a líder é a Porto Seguro. A decisão de comprar toda a operação, em uma das maiores transações do setor nos últimos anos no Brasil, é agregar produtos licenciados, tecnologias e capital intelectual da SulAmérica, incluindo 300 profissionais da área comercial. “O Brasil é um mercado atrativo para as seguradoras e que nos permite ganhar escala. Os grupos, locais e internacionais, estão se reposicionando para isso”, diz Folch.
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