Brasil está menos vulnerável a choques
A menor vulnerabilidade a choques externos e internos é um trunfo do Brasil num momento em que uma nova crise voltou a nublar o cenário político. Aliado a isso, o ambiente externo tranquilo, com juros internacionais em níveis baixos, ajuda a entender o comportamento não muito volátil dos preços dos ativos brasileiros nas últimas semanas, mesmo com a divulgação da gravação de uma conversa comprometedora entre o presidente Michel Temer e o empresário Joesley Batista, da JBS.
Relatório do Itaú Unibanco destaca que os indicadores de solvência externa e a elevada disponibilidade de recursos na Conta Única do Tesouro mostram uma situação mais confortável para o país absorver eventuais solavancos, embora ressalte as dificuldades do quadro fiscal, evidenciadas pela dinâmica desfavorável da dívida pública.
Elaborado pelos economistas Julia Gottlieb e Pedro Schneider, o relatório do Itaú Unibanco enumera alguns dos amortecedores que reduziram a vulnerabilidade da economia brasileira a choques externos nos últimos anos. O primeiro é o elevado nível de reservas internacionais, superior a US$ 370 bilhões, enquanto o segundo é a redução significativa do déficit em conta corrente, que recuou no acumulado em 12 meses de 4,44% do PIB em abril de 2015 para 1,06% do PIB em abril deste ano. Além disso, esse rombo passou a ser integralmente coberto pelo investimento estrangeiro direto no país.
“A necessidade de financiamento externo diminuiu bastante”, diz o analista Antonio Madeira, da MCM Consultores. A consultoria estima que o superávit comercial poderá atingir US$ 58 bilhões neste ano – no ano passado, o saldo foi de US$ 47,7 bilhões. Para o déficit em conta corrente, a MCM acredita num número próximo dos US$ 23,5 bilhões de 2016, com o investimento direto cobrindo o rombo com folga.
Os economistas do Itaú Unibanco também enfatizam a forte diminuição do estoque de swaps cambiais (instrumentos ofertados para dar proteção contra a oscilação excessiva e evitar uma desvalorização exagerada da moeda). Essa redução, segundo eles, abre espaço para o Banco Central (BC) atuar com mais liberdade no mercado de câmbio. No âmbito interno, Julia e Schneider destacam o grande volume de recursos da Conta Única do Tesouro, “que o permite honrar seus compromissos sem recorrer ao mercado por aproximadamente um ano”.
Já o economista-chefe do Banco Votorantim, Roberto Padovani, diz que 70% da relativa tranquilidade dos preços dos ativos brasileiros se deve à calmaria no ambiente internacional. Segundo ele, o cenário de pouca volatilidade global, com os juros dos títulos do Tesouro americano em níveis baixos, contribui para que não haja um comportamento muito volátil por aqui, mesmo depois da divulgação da gravação da conversa entre o presidente Michel Temer e o empresário Joesley Batista, da JBS. É um ambiente favorável para emergentes como o Brasil.
Ao tratar dos motivos para a menor fragilidade do Brasil, os economistas do Itaú Unibanco lembram a evolução das reservas brasileiras desde meados da década passada. Entre 2006 e 2012, pularam de US$ 60 bilhões para cerca de US$ 370 bilhões, nível próximo do qual elas permanecem até hoje. “Os sucessivos superávits no balanço de pagamentos, seja pelo boom de commodities ou pelo intenso fluxo de capitais para países emergentes no pós-crise, permitiram que o Brasil acumulasse um elevado nível de reservas no período”, dizem os autores do estudo. “Desde então, o setor público passou a ser credor [líquido] em dólar, com as reservas ultrapassando a dívida externa pública.”
Uma comparação importante é a da dívida externa de curto prazo com o volume de reservas, “que permite analisar o risco de uma crise afetar a capacidade de o país acessar os mercados internacionais”. “As reservas devem cobrir pelo menos a totalidade da dívida externa de curto prazo, antecipando um possível bloqueio aos mercados internacionais nesse período.” No caso do Brasil, elas respondem por 648% do endividamento de curto prazo, bem mais que os 115% da Turquia e dos 135% da África do Sul. Na Índia, o indicador é de 448%, atingindo 774% na Rússia.
Os economistas do Itaú Unibanco ressaltam também a melhora do padrão de financiamento do déficit em conta corrente, que mostra as transações de bens, serviços e rendas do país com o exterior. Nos últimos anos, o rombo diminuiu significativamente, devido aos efeitos da recessão e do câmbio mais desvalorizado. Ao mesmo tempo, o investimento estrangeiro direto no país se manteve elevado.
O estudo compara o volume de investimento direto para operações de participação no capital, na casa de casa de 3,3% do PIB, com o déficit em conta corrente, de cerca de 1% do PIB. Em 2013 e 2014, esses investimentos eram inferiores ao rombo em conta corrente, destaca o relatório. “O financiamento do balanço de pagamentos se tornou mais confortável e saudável nos últimos dois anos”, escrevem Julia e Schneider. “Isso porque, em sua maioria, o investimento estrangeiro direto na forma de participação no capital tem perfil de mais longo prazo e, portanto, tende a ser menos volátil e sensível à flutuações econômicas e cambiais de curto prazo.”
Outro “amortecedor adicional” é a queda no estoque de swaps cambiais. Com um volume menor desses instrumentos, o BC pode atuar mais intensamente em períodos de volatilidade maior, dizem Julia e Schneider. “Ou seja, em momentos de depreciação cambial mais intensa, o BC pode vender swaps cambiais no mercado oferecendo proteção cambial para os agentes da economia.” Em março de 2015, o estoque chegou a US$ 113 bilhões, um número muito elevado. Quando o real se desvalorizava, havia um impacto muito alto sobre a conta de juros. Hoje, o número está na casa de US$ 25 bilhões, “criando uma posição bem mais confortável para que o BC possa atuar em momentos de possível mau funcionamento do mercado de câmbio”, diz o estudo.
O Itaú Unibanco também elaborou um indicador de vulnerabilidade externa, analisando um grupo de 19 emergentes. O índice mostra números de 2016 para a relação entre reservas e o PIB, o déficit corrente e o PIB e a dívida externa e as receitas de conta corrente (exportações de bens e serviços). O Brasil aparece como um pouco mais vulnerável que a média histórica, mas não entre os mais frágeis. “África do Sul, Chile, Indonésia, Argentina, Turquia e Colômbia têm situação externa mais delicada.”
Também colabora para segurar choques o alto volume de recursos na Conta Única do Tesouro, mesmo com o quadro fiscal difícil. “Sem reformas (sendo a principal a da Previdência) que tornem o ajuste fiscal baseado na emenda do teto de gastos viável ao longo do tempo, não há perspectiva de melhora na tendência de resultados primários cada vez mais deficitários e a dívida pública continuará em trajetória insustentável”, dizem eles, lembrando que o endividamento bruto saltou da casa de 52% do PIB em 2013 para a casa de 70% do PIB em 2016. Apesar dessas ressalvas, os dois observam que o Tesouro tem um trunfo importante – a capacidade de se manter fora do mercado “em momentos de custos de financiamento potencialmente distorcidos”.
Hoje, o Tesouro tem caixa para ficar cerca de um ano sem se financiar pelo mercado. A Conta Única tem R$ 1 trilhão, o equivalente a 16% do PIB, suficiente para rolar um déficit nominal (o resultado das contas públicas incluindo gastos com juros) de R$ 580 bilhões, ou 9,2% do PIB, além de R$ 425 bilhões, ou 6,7% do PIB, referentes à dívida pública que vende nos próximos 12 meses. “Esse vultoso volume de recursos é um importante colchão, que garante a solvência doméstica do Estado em caso de estresse prolongado no mercado”, dizem Julia e Schneider, observando que, dado o que foi dito sobre a dívida pública, “o uso dos recursos da Conta Única compra tempo, em momentos de estresse, mas não elimina a necessidade de reformas”.
Para Madeira, o grande volume de dinheiro de que o Tesouro dispõe dá um “certo” conforto. “A pior coisa seria o Tesouro ficar em córner”, diz ele. Madeira e Padovani também consideram que parte do comportamento pouco volátil do mercado brasileiro se deve à avaliação predominante por parte dos investidores que a nova crise terá um desfecho rápido. Muitos analistas trabalham com a hipótese da saída de Temer e o avanço da agenda de reformas, embora talvez com algumas concessões. Na visão de Madeira, se ficar claro que as reformas não vão passar no Congresso, os preços vão reagir. O dólar, que fechou próximo de R$ 3,29 ontem, tenderia a buscar a casa dos R$ 3,50, por exemplo.
Fonte: Valor