Boa governança, provisões e contingências
Termina em breve a temporada de publicação de balanços das companhias abertas em 2008. A leitura atenta dos documentos mostra intensas movimentações nas provisões para passivos contingentes e nas reservas para fazer frente a perdas em processos judiciais. Muitas empresas fizeram um grande esforço para rever estes valores e apresentar números mais transparentes aos seus acionistas, e o resultado final é bastante bom para o desenvolvimento do mercado de capitais.
Em alguns casos, houve substancial redução das provisões. A análise mais atenta mostra pesadas reversões de valores fundadas apenas e tão somente na mudança de opinião dos consultores legais quanto ao risco envolvido em cada litígio. Os valores “ganhos” com as reversões ajudaram a encorpar o lucro de companhias, algumas delas sabidamente à procura de compradores. O trabalho sério de algumas companhias pode, ao fim, ser confundido com o movimento oportunista de uma ou outra maçã meio passada no cesto.
Outro movimento observado foi o de fazer um ligeiro aumento das provisões no ativo circulante, pretendendo mostrar, com isto, uma administração austera e transparente. Entretanto, estas mesmas companhias apresentaram reduções de grande porte nas provisões do passivo não circulante, por vezes bilhões de reais. Estas reavaliações podem ser um esforço sério em promover a transparência. Mas podem ser também uma estratégia de administradores para aparecer um pouco melhor na foto – afinal, por que comprometer a imagem com um evento de desfecho tão longínquo quanto uma ação judicial? Cifras de bilhões associadas a algo tão nebuloso quanto uma ação judicial complexa podem assustar possíveis investidores.
Por fim, analistas e gestores de fundos deveriam estar um pouco mais atentos às reversões de provisões em matéria tributária. As discussões judiciais em matéria de tributos envolvem, em geral, argüições sobre a sua constitucionalidade e forma de cobrança. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já se manifestou, por meio da Resolução nº 489, de 2005, pela possibilidade de reversão dessas provisões apenas com o trânsito em julgado das decisões em recursos e quando não existir mais a possibilidade de contestação pelo fisco.
Por que, apesar dos inegáveis avanços recentes na transparência das demonstrações financeiras, continua a haver tanto espaço para lançamentos contábeis tão controversos como os vistos na recente safra de balanços?
Neste contexto, os procedimentos de “due diligence” não estão imunes a críticas. A idéia de que cada ação judicial é avaliada por um especialista, que utiliza sua experiência para oferecer uma avaliação técnica, está longe da realidade. Procedimentos de “due diligence” são feitos em massa e dificilmente as equipes conseguem fazer coincidir um caso com um advogado especialista na matéria. No estudo mencionado sobre a análise da acuidade de previsões legais, verificou-se que a maioria das avaliações indica valores de R$ 10 mil ou de R$ 2 mil como prováveis – a preferência por valores padronizados coloca sob suspeição a acuidade das previsões.
As avaliações não levam em conta o histórico da empresa em ações semelhantes. O bom desempenho no litígio depende de provas e documentos produzidos dentro da empresa, do comportamento de funcionários e prepostos na condução dos negócios e da reputação criada pela companhia ao longo dos anos. Olhar apenas o mérito jurídico dos casos é pouco, e aqui a contribuição de análises e modelos “jurimétricos” tem o seu melhor potencial – ou seja, devem ser elaborados modelos estatísticos usando a informação do desfecho de ações judiciais semelhantes da própria empresa para, posteriormente, se fazer a previsão para ações futuras. Os modelos devem incluir também dados de ações judiciais externas, de outras empresas, pois muitas vezes os dados históricos têm um número muito pequeno de observações para alguns litígios.
O papel do consultor legal deve ser aumentado, pois ele é essencial nas análises de cenário e na preparação de avaliações qualitativas. Uma empresa não fica inerte depois de colher um resultado desfavorável em um determinado tipo de litígio, algo que pode ser avaliado apenas através da opinião dos advogados da empresa.
Ao fim, verificamos que o histórico das ações judiciais anteriores, os dados externos e a opinião de especialistas são os candidatos a oferecerem previsões mais acuradas, se considerados em conjunto. Para os especialistas em risco operacional a técnica soa familiar, lembrando os modelos que atribuem um peso a cada fonte de dados na avaliação do risco operacional. A combinação de dados nesta forma é uma evolução grande em relação ao tratamento hoje dado pelas companhias às previsões, entretanto eles podem resultar em uma convergência muito demorada com valores reais (não observáveis) do risco. Técnicas de análise bayesiana comprovadamente fazem as estimativas convergirem de forma mais rápida. As antigas técnicas de “value at risk”, uma opção simples e barata para atacar o problema, nem sempre se ajustam às distribuições de probabilidade dos resultados das ações judiciais. O número de violações dos modelos baseados em regressões “quantílicas” é substancialmente menor, e podem ser levados em conta pelas empresas que pretendem aumentar a qualidade de suas previsões.
O bom momento das bolsas brasileiras deve se prolongar por bastante tempo, e o Brasil é em prática o único candidato a consolidar o movimento de bolsas na América Latina e mesmo no hemisfério Sul. Os investimentos feitos pelas companhias na melhora da transparência e no oferecimento de informações mais acuradas serão colhidos na redução de custo de capital através de operações de bolsa. A corrida começou, que vençam os melhores.
Fonte: Valor