ANS quer testar planos só para exames e consultas eletivas
A criação de planos de saúde que contemplem apenas consultas estritamente eletivas e exames de baixa complexidade está em discussão na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Uma câmara técnica foi instituída em maio para debater a proposta de implementação de um ambiente regulatório experimental (chamado de sandbox regulatório) para testar o novo produto. Mas o movimento da agência chamou atenção de instituições de defesa do consumidor e juristas – eles temem que produtos assim possam deixar o consumidor desamparado.
A discussão começou em outubro do ano passado, quando a ANS anunciou um pacote de mudanças para o mercado de planos de saúde. Em dezembro, a agência publicou a Resolução Normativa Nº 621/2024, com detalhes sobre o sandbox regulatório. A ação causou polêmica e gerou reações, principalmente do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que apontou irregularidades. De acordo com o Idec, a ANS dispensou a realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), procedimento considerado essencial e obrigatório para entender o impacto que a nova regulação terá no setor, em especial os riscos aos consumidores brasileiros que contratam planos de saúde.
“A justificativa dada pela agência para dispensar o AIR era de que se tratava de uma resolução normativa interna e que não haveria impacto aos agentes econômicos, caso não houvesse editais de sandbox regulatório”, diz o Idec. “A agência viola a própria Lei de Planos de Saúde, em especial, os artigos 10 e 12. Isso porque a ANS não pode flexibilizar as proteções da lei e criar um modelo de plano com cobertura abaixo da legalmente autorizada. Além disso, por fazer esse tipo de flexibilização, a agência não segue as boas práticas recentes sobre sandbox, editadas pela Advocacia Geral da União e pelo Tribunal de Contas da União”, defende.
Na época, a ANS argumentou que a proposta atingiria, principalmente, a atenção primária e a expectativa, segundo a agência, é que “os consumidores que não têm condições de pagar por um plano de saúde e que buscam atendimento em clínicas populares ou através dos cartões de desconto – que não contam com qualquer regulação ou fiscalização – poderão ter acesso a atendimentos preventivos e primários de saúde, podendo ter diagnósticos precoces, acompanhamento em saúde e evitando o agravamento de doenças”.
Porém, a advogada e especialista em Direito Médico, Luciana Guimarães, não enxerga assim. Segundo ela, a proposta contradiz a Lei nº 9.656/98, que exige uma cobertura mínima para planos de saúde, incluindo urgência, emergência e internações. “O maior risco é a falsa sensação de segurança para o consumidor, que pode ficar desassistido em situações graves, levando a mais judicialização e sobrecarga do SUS”, aponta.
“A proposta entra em conflito com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), especialmente nos artigos sobre direito à informação clara (risco de publicidade enganosa sobre a cobertura limitada), proteção contra cláusulas abusivas (restrição de direitos fundamentais à saúde) e o princípio da boa-fé e confiança”, cita a advogada.
Além disso, ela aponta que a proposta se assemelha aos cartões de descontos, que já existem e são desaconselhados pela própria ANS, o que seria contraditório. “Ela propõe um produto restrito que se assemelha a eles (os cartões), mas com o selo de regulamentação. Isso geraria confusão e poderia criar uma reserva de mercado para operadoras, flexibilizando o padrão mínimo de cobertura que a própria ANS estabeleceu para a proteção do beneficiário”, critica.
Luciana Guimarães expõe ainda que a ANS foi criada para regulamentar, normatizar e fiscalizar o setor, dentro dos limites estabelecidos pela Lei n° 9.656/98. “A agência não tem competência legal para criar um novo tipo de plano de saúde que não esteja previsto em lei. Fazer isso por meio de um sandbox seria uma forma de contornar a legislação vigente”, rebate.
O Idec aponta ainda o sandbox regulatório como um potencial agravante de problemas já existentes dentro da saúde suplementar. “Para além dos riscos que existem a partir de uma proteção de cobertura insuficiente, o mercado da saúde suplementar já é marcado por práticas abusivas que prejudicam os consumidores: altos reajustes, rompimentos unilaterais e frequentes negativas de cobertura são exemplos de problemas reais, denunciados com frequências pelas pessoas consumidoras”, cita o instituto.
ANS lançou consulta pública
Após a repercussão negativa do tema, a agência lançou uma consulta pública, em maio, para ouvir mais agentes do setor. Depois, em uma espécie de recuo, decidiu criar uma câmara técnica para avaliar a situação. O grupo ainda está analisando o assunto.
“Identificamos a necessidade de aprofundamento de diversas dimensões da proposta, inclusive no que se refere à sua compatibilidade com os princípios que regem a proteção dos direitos dos consumidores e a regulação setorial. Com a câmara técnica, buscamos construir uma solução regulatória mais segura, transparente e tecnicamente fundamentada, com ampla participação social”, destacou o diretor de Normas e Habilitação dos Produtos, Alexandre Fioranelli, na ocasião.
O Idec comemorou a ação. “O recuo em continuar as discussões sobre o sandbox é fruto da pressão de entidades de consumidores, como o próprio instituto, especialistas, pesquisadores, profissionais do SUS, o Ministério Público Federal e do próprio corpo técnico da agência”, diz a entidade.
Setor de planos de saúde defende proposta da ANS
Na contramão das entidades de defesa do consumidor, as entidades do setor de saúde suplementar saíram em defesa da ANS.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que representa as maiores operadoras de planos de saúde do país, diz que a medida abre a possibilidade de oferecer mais uma alternativa de assistência aos beneficiários, “preservando todas as demais opções de planos hoje disponíveis”.
“Coberturas mais focadas, como a proposta pela ANS, podem contribuir para tornar os planos de saúde mais acessíveis e ampliar o acesso dos brasileiros à saúde de qualidade que as operadoras propiciam”, diz a entidade em nota. “Também irão colaborar para maior promoção de saúde e prevenção de doenças, com efeitos benéficos sobre todo o sistema de saúde, ao aliviar o SUS das filas de espera de consultas eletivas e exames”, acrescenta.
Já a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz que está acompanhando os debates sobre o tema e aguarda o parecer final da câmara técnica criada pela ANS. A associação acredita que o novo produto “tem potencial para ampliar o acesso à saúde para milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS ou que recorrem a serviços sem qualquer garantia de qualidade, segurança ou regulação”.
“É fundamental esclarecer que este tipo de produto em análise no Sandbox Regulatório é direcionado a pessoas que atualmente não possuem planos de saúde e aqueles que hoje recorrem aos cartões de benefícios ou de descontos. Atualmente estima-se que em torno de 40 milhões de brasileiros estejam ligados a esses produtos que não contam com qualquer regulação da saúde suplementar, sem qualquer garantia de atendimento ou segurança”, pontua o presidente da Abramge, Gustavo Ribeiro.
Fonte: O Tempo