À Miúda
À miúda, a filha mais nova, a obrigação de manter-se solteira,
Permanecer nas sombras do lar que se enche de bolor, como sua alma.
O lar que se eterniza com os mesmos objetos, já sem função de enfeitar,
Mas de serem limpos, espanados, areados, e aparecerem em fotos no natal.
À miúda, a filha mais nova, a obrigação de permanecer solícita.
Pronta a ser solicitada, a qualquer instante, pela mãe.
Cúmplice-guardiã das tosses noturnas, dos reumatismos, das somatizações, das receitas com seus horários e dosagem de remédios.
Das ladainhas, das palavras dogmáticas, do pessimismo, da vida em preto e branco de outrem.
Como as pratas da casa, será vislumbrada nos raros encontros familiares.
Não valorizada ou querida, apenas tendo sua presença, e não a existência, conferida, casualmente. Como o relógio de toque estridente atrás do sofá, onde se senta enrolada, encalhada, sem prazo de validade.
À miúda, a filha mais nova, não há necessidade de belezura.
Alma fraturada, espinha envergada. Ocultando, incomodada, os seios que teimavam desabrochar.
Os anos são cúmplices da decadência, da existência assexuada, estéril.
Sua vida fora atrelada à de quem lhe pariu no momento em que viu a luz.
A infância confiscada, as meninices subtraídas, as festas dispensadas.
À miúda, a filha mais nova, o dever de não se queixar, de manter-se desalojada de vontades. De ouvir as mazelas da mãe, de olhos mergulhados no solo.
De transformar as ladainhas intermináveis em ruído de fundo, que não escutava mais, apenas ouvia.
A relevar a crescente freqüência das palavras penetrantes, das palavras ácidas da mãe.
A insistir em desconsiderar o nó em seu peito que se avolumava, a náusea que sentia nos momentos mais irrespiráveis, cortantes.
À miúda, a filha mais nova, a impossibilidade de antecipar a partida da própria vida que não lhe pertencia.
Vida agrilhoada aos caprichos do absurdo, à inconseqüência de tradições inquestionáveis, a laços sanguíneos mas não amorosos. Terrível destino, tal qual uma ave, que tem a cabeça golpeada no momento do abate, mas que, por pouca destreza do cozinheiro, a mantém pendente, ao lado do corpo. A dor pungente, crescente, lhe foi impingida, a fratura, irreversível. O único remédio é um golpe final.
À miúda, a filha mais nova, a decisão de aplacar a dor, de abrir a cortina pesada, a janela, de encher o peito, de ar, de estufar o peito, de sensualidade. De não tombar no poço escuro em que sua mãe afundara. Dar-se à luz.
Na receita do dia de sua mãe-carrasca um novo remédio: o golpe final. Com destreza não efetivamente ensaiada, mas mil vezes antecipada.
Desembaraça os cabelos, ousa sorrir para o espelho, procura a melhor lente. Acompanha uma única lágrima a desnudar-lhe, a escorrer-lhe pelo rosto. Primeiro brilho, primeiro adorno, primeira carícia.
À miúda, sua vez de existir.
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Meu poema narrativo ficcional tem na imagem da “Miúda” a figura central, que transcende qualquer contexto local ou atual. No caso, as circunstâncias foram que minha personagem se viu fadada, desde o nascimento, a cuidar e fazer companhia à mãe. Sob um escopo mais abrangente, podemos focar uma leitura maior, onde tantas pessoas, homens ou mulheres, dedicam a vida a cuidar de outra pessoa, muitas vezes, abdicando da própria.
Minha inspiração teve duas fontes distintas: o livro da escritora mexicana Laura Esquivel “Como Água para Chocolate”, e o conto “A saia almarrotada”, do escritor moçambicano Mia Couto. Em ambos há mulheres com versões de vida semelhantes à levada pela minha “Miúda”, todas tendo em comum um final pungente.
O termo Miúda, nitidamente inspirado no português de Portugal – Mia Couto – traz ainda a idéia de que ela seria a eterna caçula, destituída de maioridade, de autonomia.
Utilizando versos livres modernos, minha intenção foi conferir à narrativa uma tensão crescente, utilizando-me da anáfora “À miúda, a filha mais nova”, no início de cada bloco com a intenção de evidenciar que o que lhe acontecia era algo pré-estabelecido à revelia dela. Tentei manter uma linguagem enxuta para narrar uma terceira versão do drama que me foi inspirado pelas fontes acima mencionadas. Escolhi e alterei palavras minuciosamente para “carregar nas tintas” de forma coesa. Até o “send” derradeiro espero diminuir a contagem de palavras ainda, mantendo a dramaticidade.