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A crise que derruba mitos

Desde o último dia 7 de setembro o mundo parece ter mudado de eixo. Foi em nossa data nacional que o governo norte-americano assumiu a tutela de duas das maiores companhias de refinanciamento hipotecário dos Estados Unidos, a Freddie Mac e a Fannie Mae. O governo divulgou à época que estava disposto a investir US$ 100 bilhões em cada uma delas. Algo impensável há pouco tempo. A verdade é que diversas teorias econômicas começaram a fazer água. Emblemático que esse auxílio prestado pelo governo a duas companhias da esfera privada significou, na prática, um dos maiores aportes financeiros verificado na história dos Estados Unidos.
O governo norte-americano entrou no jogo com o firme objetivo de dar sobrevida às empresas e, desse modo, procurou superar a crescente onda de temores de que milhares de seus clientes estavam inadimplentes no pagamento de suas hipotecas. Pode ser que, no futuro, essa pesada intervenção governamental para evitar o colapso de duas empresas que, juntas, respondem por mais de 40% dos empréstimos imobiliários concedidos nos EUA, venha a ser vista como a abertura da maior crise financeira ocorrida no mundo moderno e de proporções continentais.
De lá para cá muita água represada em tempos de aparente normalidade econômica foi se reunindo para formar um tsunami financeiro de proporções inéditas. No dia 15 de setembro, o Lehman Brothers, o 4º maior banco de investimento dos Estados Unidos, pediu concordata e a Bolsa de Valores de São Paulo teve sua primeira maior queda em um único dia: 7,59%. Já no dia seguinte, a AIG — maior seguradora do mundo — recebeu outro extenso aporte de dinheiro do governo norte-americano para evitar sua falência, um negócio de cerca de US$ 85 bilhões.
No dia 26 daquele mês, o Banco Mutual, outro dos maiores bancos daquele país, anunciou sua falência. O resto é história permeada pelo conhecido efeito dominó: bancos e seguradoras não superam a crise de liquidez e, em sua queda, vão derrubando empresas menores.
Como tudo está interligado e a economia é de longe a parte mais vistosa do movimento conhecido como globalização, as bolsas de vários países e em todos os continentes foram imediatamente contaminadas pela onda de temor, apreensão e desespero. As projeções de crescimento econômico das nações despencaram, algumas para níveis negativos. Analisando a encrenca em que os mercados se envolveram não se pode dizer que tal onda tenha já atingido seu clímax. Mesmo com drásticos remédios oferecidos pelos governos, o ponto em comum é que todos, sem exceção, retiram o Estado de seu status quo para enveredar por um caminho intervencionista nunca antes pensado. Essa intervenção já ultrapassa a casa do trilhão de dólares e alguns especialistas já chegam a estimar um rombo a ser coberto da ordem de US$ 3 trilhões.
Ainda no calor da crise, podemos rever alguns conceitos alçados à condição de mitos, de cláusulas pétreas de qualquer tratado financeiro internacional. Um desses mitos que parecem verdade é o que pontifica ser o setor público ineficiente, perdulário e no melhor das vezes, míope. Tal arrazoado aponta para a sacralidade da iniciativa privada, detentora por méritos próprios dos louros da excelência no gerenciamento financeiro e administrativo. Outro desses conceitos é o que enuncia ser de boa prática dar ao Estado o que é do Estado e ao mercado o que é do mercado. Agora embaralha-se tudo, e o que é público transfere-se em socorro do que é privado. Como já se disse, quando a empresa tem lucros, estes são dela e dos seus acionistas. Mas quando tem prejuízo, que seja transferido para o setor público, para que o contribuinte pague a conta das aventuras e erros privados. Digno de nota é o fato de o socorro oficial acontecer de forma rápida, quase que concomitante à crise, enquanto temas seculares que pautam as conversações multilaterais, como a fome e o desemprego no mundo, a devastação dos recursos naturais do planeta, o superaquecimento e o alastramento de epidemias arrastam-se, por assim dizer, nos escaninhos recheados das boas intenções.
Não podemos ainda discernir se a crise tende a se estabilizar ou se ganhará novos contornos. Mas podemos afirmar que ela, como disse o presidente francês Nicolas Sarkozy, exige um novo desenho do sistema capitalista. E quem sabe surja, daí, um capitalismo mais fiscalizado e compulsoriamente mais humano, menos predatório e mais comprometido com o social.
Agaciel da Silva Maia
Economista, pós-graduado em administração pública pela FGV, é diretor-geral do Senado Federal

Fonte: Correio Braziliense

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