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A confusão entre direita e esquerda

O que obriga desde já a avançar uma demarcação singela: é “de esquerda” toda aquela e todo aquele que assim se declara. O critério da autodeclaração parece-me suficiente para afastar dogmatismos e sectarismos de variados matizes. Mas está longe de pôr termo a qualquer debate. Pelo contrário, é apenas um ponto de partida. Porque o debate não é sobre ser “de esquerda” ou “de direita”, o que seria apenas uma curiosidade taxonômica. “Esquerda” e “direita” são termos em disputa e é nesse sentido polêmico que utilizo esses termos aqui.
O que mais chama a atenção hoje quando se toma o campo da esquerda como objeto é a perda de uma base comum de diálogo. Não desapareceram apenas um vocabulário e um estoque comum de problemas. Desapareceram também os solos históricos em que se ancoravam.
Tomando-se um período como, por exemplo, o que vai dos anos 1970 ao começo dos anos 1990, observa-se uma confluência nova e significativa. Os chamados novos movimentos sociais deslocam o foco da luta diretamente econômica e multiplicam as bandeiras políticas: meio ambiente, gênero, sexualidade, etnicidade. A dinâmica mesma da militância de esquerda se diversificou, se descentrou e se transformou qualitativamente. Ao longo do tempo, esse desenvolvimento teve pelo menos duas conseqüências importantes: o socialismo deixou de ser o horizonte comum partilhado; o Estado foi pressionado a alterar estruturalmente sua relação com a sociedade civil.
O resultado foi o reconhecimento, por parcelas significativas da esquerda, de que a democracia de massas e a forma que tomou o Estado sob o capitalismo não eram meramente instrumentos de dominação, mas correspondiam também ao produto de muitas décadas de lutas de resistência e transformação social, que conseguiram, entre outras coisas, introduzir importantes direitos sociais. Parte da esquerda passou a ver na política institucional uma arena legítima de disputa e não apenas uma maneira de denunciar a farsa da democracia existente. Passou a ver no direito não apenas um instrumento de dominação de classe, de uniformização e limitação da ação, mas também um campo fecundo de luta por ampliação da igualdade e da liberdade. Quando isso aconteceu, parcelas significativas tanto da direita quanto da esquerda tiveram de aceitar o adversário como legítimo e não simplesmente como um inimigo a ser abatido.
Eis aí, a meu ver, a origem da confusão atual. O que embolou a distinção entre esquerda e direita foi exatamente a virtude desse processo: a aceitação do jogo democrático por importantes parcelas dos dois lados como solo político comum. Essa novidade teve pelo menos duas conseqüências bastante distintas.
Em primeiro lugar, há que registrar a reafirmação de posições políticas tradicionais nos dois campos políticos. Do lado da esquerda, encontram-se posições que se recusaram a fazer esse movimento de aceitação do jogo democrático e reafirmam, sob novas roupagens, as teses de que a democracia dita formal-burguesa é mero instrumento de dominação de classe e a autêntica resistência deve se dar na utilização meramente estratégica de suas instituições para destruí-las. Para dramatizar essas velhas teses em uma nova encenação são utilizadas idéias como a de desconstrução, de estado de exceção, de biopolítica, no sentido de mostrar que nada há de mais autoritário, controlador e arbitrário do que a democracia existente.
Do lado da direita, há que registrar aquelas posições que, de maneira instrumental, lançam mão do discurso democrático para estandardizar um modelo institucional definitivo e único, sem alternativas. Essas posições de direita se exprimem tanto em atitudes xenófobas e discriminatórias quanto na idéia de que esse modelo único e abstrato deve ser exportado para todo o planeta. Mediante guerras, se necessário.
Em segundo lugar, entretanto, é preciso enfatizar que o fato de parcelas significativas da direita e da esquerda aceitarem as instituições democráticas existentes como terreno legítimo de disputa não significa que partilham de uma mesma compreensão do seu sentido. Pois, do ponto de vista dessa nova esquerda, compreender as instituições democráticas existentes como resultado da luta social mostra não apenas que elas são produto histórico e, como tais, podem ser radicalmente transformadas, mas também que não há contradição entre defender o seu estágio atual e empurrá-las para além de sua configuração presente. É somente dessa nova esquerda que passo a tratar agora.
Começo, no entanto, pela caracterização da direita. Considero importante distinguir no interior desse campo posições simplesmente conservadoras e posições além disso xenófobas, discriminatórias, belicosas e beligerantes. Mas acredito que, mesmo observadas essas importantes diferenças, a caracterização pode ser aplicada, no geral, à direita atual em seu conjunto.
A direita entende a democracia com base em um catálogo de direitos determinado, fixo e previamente definido. Nessa lógica, a liberdade tem precedência absoluta e é entendida em termos de um conjunto de direitos previamente definidos a serem preservados. Não apenas nisso essa posição se assemelha a um congelamento do velho projeto do Esclarecimento (ou iluminismo, como se queira chamá-lo). Também na sua concepção de modernidade a direita mantém o modelo eurocêntrico de um processo de modernização modelar, em que se repetem as etapas, as instituições e os resultados de uma certa imagem do que sejam as instituições democráticas capitalistas. Com isso, também projeta como modelar uma forma de vida determinada.
A idéia tradicional de tolerância que ela defende é insuficiente para fomentar o surgimento de novas formas de vida, já que as relega ao domínio do privado, sem mais. E esse é um ponto importante que distingue as posições de esquerda: distinções como essa entre público e privado não podem ser fixadas de antemão.
A esquerda não pode aceitar o congelamento de uma determinada imagem de modernização que deveria ser repetida como único caminho para a construção de uma sociedade democrática. Seu vínculo com o Esclarecimento e com os ideais de igualdade e liberdade começa por uma crítica radical da violência com que esse projeto se realizou por sobre a cabeça de indivíduos e populações inteiras. Conseqüentemente, a esquerda também não pode aceitar sem crítica a tese de que os direitos de liberdade são condição para os direitos de igualdade, pois isso definiria um modelo prévio de democracia que viria se sobrepor às disputas políticas concretas. Muito menos pode aceitar a idéia de um catálogo prévio de direitos, independentemente de sua discussão e deliberação em contextos sociais concretos.
Nem por isso, entretanto, a esquerda sustenta um primado de princípio da igualdade sobre a liberdade. A idéia de emancipação tornou-se de tal maneira complexa que lutas por liberdade não só não podem mais ser separadas das lutas por igualdade como também não podem ser mais reduzidas a estas. As duas frentes de disputa têm lógicas próprias e têm de ser perseguidas concomitantemente. Só assim se torna possível questionar em seu conjunto o modelo de modernização imposto como único: porque ele é desigual, sem dúvida; mas também porque emudece, segrega e impede o aparecimento de novas vozes que apontam para o desenvolvimento de novas formas de vida.
Não é essa, no entanto, a autocompreensão de importantes parcelas do que chamei aqui de nova esquerda. Muitas das disputas atuais tendem a reduzir as questões de liberdade a uma noção inflada de igualdade. Creio que os movimentos sociais não apenas podem dispensar essa noção inflada de igualdade para justificar suas bandeiras como ganhariam muito em deixá-la para trás, passando a operar no duplo registro de demandas por igualdade e por liberdade.
Segundo a caracterização proposta aqui, no jogo em que liberdade e igualdade passam a operar , a prioridade de uma em relação à outra depende sempre do contexto de ação. O critério de prevalência no âmbito de uma disputa determinada não pode ser outro senão o do fomento da autonomia de cidadãs e cidadãos, como indivíduos ou como grupos organizados em vista de uma luta concreta.

Fonte: Valor

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