A cidade diante do apocalipse motorizado
O automóvel viveu sua semana de maço de cigarro. Sob o impacto do Dia Mundial sem Carro, acontecido ontem, o carismático equipamento foi apontado como um cancro a ser combatido. Uma pesquisa divulgada pelo Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP analisou as condições do ar nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Curitiba e Porto Alegre. Nenhuma delas atende ao que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Apenas na capital paulista, uma média de 870 veículos são emplacados todos os dias – 635 carros, 235 motos. A frota, que cresce em ritmo oito vezes maior que a população, responde por um aumento de 5% ao ano na emissão de poluentes. Se a coisa for nessa toada, aponta o Instituto de Climatologia da USP, em 2020 a cidade terá a atmosfera de Cubatão. Um exame de saúde aplicado a 50 profissionais da Companhia de Engenharia de Tráfego, a CET, que trabalham nas ruas de São Paulo revela um cenário sinistro. Analisados pelo Instituto do Coração, apresentaram aumento da pressão arterial e da freqüência cardíaca, fatores de risco para derrame e enfarte do miocárdio. Com baixa capacidade de resposta a situações de stress, seus corações não aceleram adequadamente – em virtude dos efeitos da poluição, sofreram uma espécie de engessamento.
Repensar o carro e os meios de transporte é vital para combater o efeito estufa e as mudanças climáticas, atesta a consultora de meio ambiente e socióloga Laura Tetti, coordenadora do primeiro programa para se retirar automóveis das ruas de São Paulo, a Operação Alerta, de 1988. O carro resume um estilo de vida e de consumo energético que se mostra completamente insustentável em termos ambientais, econômicos e de qualidade de vida. Nos últimos anos, a indústria automotiva vem reduzindo a poluição provocada por seus produtos. Segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a Anfavea, um carro produzido hoje emite 20 vezes menos poluentes do que aqueles fabricados há 15 anos. Tanto os cintos de segurança como os air bags foram incorporados por medo de demandas judiciais futuras, explica o uruguaio Guillermo Giucci, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de A História Cultural do Automóvel (Civilização Brasileira). O desenvolvimento do carro ecológico tem a mesma motivação. Se a sociedade deseja mais qualidade no ar que respira, terá de pressionar para que as mudanças aconteçam de forma eficiente. Achar que a indústria automobilística vá se adequar rapidamente às mudanças necessárias, diz Laura Tetti, é tão fora de propósito quanto achar que um tigre passará a ser vegetariano para agradar aos visitantes do zoológico.
Os problemas causados pelo excesso de carros não se resumem à poluição do ar. Ele entope as ruas, enfeia a paisagem, ocupa o espaço público, afugenta o pedestre, faz barulho, provoca acidentes – no Brasil, cerca de 35 mil mortes por ano, contando-se também os motociclistas; em São Paulo, 4 por dia (em média, 1 motoqueiro ou garupa, 1 ocupante de carro e 2 vítimas de atropelamentos). As cidades, pelo menos as antigas, não foram feitas para automóveis. Quando muito, para cavalos, carroças, charretes ou liteiras. Só os bulevares comportavam carruagens, ensina o arquiteto Hugo Segawa, professor-doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O carro, como qualquer artefato humano, foi inventado pensando-se no bem da humanidade. Mas, como parte inalienável do imaginário e do status do século 20, acabou criando novos problemas.
Desafogar as cidades do tsunami dos automóveis é tarefa especialmente difícil para os aglomerados urbanos que não contam com um serviço de transporte público verdadeiramente eficiente e de boa qualidade – leia-se as grandes extensões cobertas pelo metrô. Abrir túneis e levantar viadutos são medidas que se provam inócuas em poucos anos. O carro deixou de ser um instrumento dos poderosos para se popularizar cada vez mais, diz Guillermo Giucci. As piores conseqüências desse processo são sentidas nas cidades em desenvolvimento. Cali, na Colômbia, está empreendendo um enorme esforço na reconstrução de suas vias públicas. Todos sabemos que não vai adiantar nada. A solução, para Gucci, é limitar obrigatoriamente o uso do carro: Seria recomendável, por exemplo, que ninguém com menos de 21 anos pudesse dirigir. A medida seria certamente tão impopular quanto a tentativa do então presidente Jânio Quadros de proibir o biquíni nas praias brasileiras. Não há nada que atraia mais o ser humano do que as próteses que possibilitam a ele estender o corpo biológico às dimensões do seu desejo, teoriza o psicanalista Jorge Forbes. Além disso, no contexto em que vivemos, presentear com um carro o filho que fez 18 anos ou que passou em um vestibular se transformou numa espécie de ritual de passagem.
Em um saudável paradoxo, ativistas anticarro têm engrossado cada vez mais o coro dos insatisfeitos. A marca registrada desse pessoal são as bicicletadas, que surgiram primeiro na França e hoje congregam ciclistas do mundo inteiro. Consiste em juntar dezenas de bicicletas e pedalar no meio da rua, preferencialmente na sexta-feira e no final da tarde. O negócio é aporrinhar a vida do motorista, obrigado a encarar na esportiva a horda de lesmas à sua frente. Em junho deste ano, os espanhóis inauguraram a bicicletada desnuda – ou seja, todo o mundo pelado ante el trafico, por la justicia en las calles. Nos Estados Unidos, alunos da Savannah College of Art and Design tornaram célebre uma réplica em PVC do robusto Hummer, veículo de guerra que é vendido comercialmente pela GM e virou moda no país. Batizado de Green Hummer Project, o carro foi montado sobre quadros de bicicletas e deve ser pedalado para se mover. No ano passado, os ativistas foram premiados com o lançamento do documentário Quem matou o Carro Elétrico?, de Chris Paine. Com esse título capaz de espantar o mais devotado cliente da locadora, o filme é um panfleto imperdível contra a indústria automotiva e as companhias de petróleo. No Brasil, o livro de cabeceira da turma que essa semana pichou o interior do túnel Ayrton Senna, em São Paulo, chama-se Apocalipse Motorizado – A Tirania do Automóvel em um Planeta Poluído (Conrad). Coletânea de artigos, o seu apêndice 2 lista algumas idéias de ações anticarro propostas pelo grupo Car Busters – ou os Caça-Carros.
contemporiza Segawa. Na minha visão futurista, conclui Gucci, o carro caminha para ser um avião, ou alguma coisa que transite pelo ar. Era assim que fluía o trânsito em Blade Runner, na Los Angeles de 2019. Levando isso em conta, é melhor não reclamar da Cubatão de 2020.
Fonte: O Estado de São Paulo