A ação controlada é o terror dos corruptos
“COISA DE CINEMA.” Foi assim que um dos procuradores da força-tarefa da Lava-Jato definiu a operação policial montada com a autorização do Supremo Tribunal Federal (STF) depois que o empresário Joesley Batista entregou à Procuradoria-Geral da República as gravações entre ele e o presidente Michel Te- mer. Prevendo que seria sugado, junto com sua empresa, para o olho do furacão das investigações de corrupção, Joesley passou a gravar todos os interlocutores com os quais vinha mantendo conversas sobre pagamento de propinas e outros delitos. Dessa forma, ele inverteu a lógica das 160 delações premiadas firmadas desde que a Lava-Jato começou, há três anos. O empresário apresentou-se voluntariamente, em março, para confessar seus crimes antes de ser preso, cenário que ele e seus advogados consideravam inevitável. O conteúdo dos áudios foi suficiente para convencer os procuradores de que Joesley tinha potencial para conseguir ainda mais provas.
Dono de um assento privilegiado nas relações promíscuas entre o poder econômico e o poder público no Brasil, Joesley aceitou atuar como um agente infiltrado. Além de contar o que sabia – como acontece nas delações -, ele passou a colher provas, dentro do que a lei brasileira define como “ação controlada”. Trata-se de um expediente in-vestigativo usado em diversos países. Nos Estados Unidos, é o principal recurso para desbaratar quadrilhas de narcotráfico, tanto que é elemento central de diversas tramas de Hollywood e da TV americana (“coisa de cinema”). Com o conhecimento de um juiz, os investigadores acompanham o funcionamento da organização criminosa, permitindo que ela siga praticando crimes, como forma de angariar mais provas e ampliar o espectro de conhecimento sobre os envolvidos nos atos ilícitos. Uma ação controlada pode ser realizada apenas por meio de monitoramento ou com o emprego de agentes ou colaboradores infiltrados. As informações coletadas por Joesley sob a supervisão da Polícia Federal consistem na primeira ação controlada feita no âmbito da Lava-Jato e, segundo um delegado da PF, servirão como ponto de partida para uma série de investigações, capazes de enredar centenas de agentes públicos.
Ao longo do mês de abril, as entregas de dinheiro combinadas por Joesley com políticos foram acompanhadas pela Polícia Federal – depois de o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no STF, ter sido avisado, como manda a lei. No total, foi rastreado o destino de 3 milhões de reais em propinas. As quatro malas que transportaram 2 milhões de reais entregues a um emissário de Aécio Neves tinham dispositivos de rastreamento que permitiram aos policiais acompanhá-las por todo o percurso, de São Paulo a Minas Gerais, até que o dinheiro fosse deposita- do na conta de uma empresa ligada ao se- nador Zeze Perrella (PMDB-MG). Os nú- meros de série das cédulas foram anota- dos pela PF para resguardar a prova e identificar os destinatários. Os chips de rastreamento foram empregados também para seguir o caminho percorri- do pelo dinheiro que Joesley Batista entregou – segundo ele, a pedido do presidente Michel Temer – ao deputado Rocha Loures (PMDB-PR). Foi graças a esse recurso tec- nológico que os policiais federais puderam estar no momento exato para filmar o parlamentar chegando a uma pizzaria de São Paulo para receber o dinheiro. Além disso, segundo um delegado da Polícia Federal familiarizado com o caso, durante quase todo o mês de abril Joesley Batista usou equipamentos de escuta sob a roupa em seus encontros com políticos e agentes públicos. Espera-se que o equipamento fornecido pela polícia propicie áudios de melhor qualidade que os que o empresário obteve com seu celular nas conversas com Temer e Aécio.
As ações controladas não são novidade no Brasil. A prática foi estabelecida na primeira lei sobre crime organizado, de 1995, que nasceu de um projeto apresentado seis anos antes por ninguém menos que o então deputado Michel Temer. No texto original de Temer, a ação controlada era definida como uma postergação da apreensão policial de mercadorias e valores ilícitos com o objetivo de identifícar um número maior de criminosos. Temer justificou o projeto como essencial para combater grupos que se assemelham “a empresas multimilionárias a serviço do crime e da corrupção generalizada”. O texto final da lei acabou dando um sentido mais amplo à ação controlada. Em vez de se restringir a acompanhar o transporte de itens ilícitos, ela passou a consistir em retardar a interdição policial de práticas criminosas, desde que sob constante observação e monitoramento. A legislação mais recente sobre crime organizado, de 2013, manteve essa definição.
Em 2010, o então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, foi preso em conseqüência de uma ação controlada que envolveu seu ex-secretário de relações institucionais Durval Barbosa, que filmou o chefe recebendo propina. Barbosa havia feito um acordo de delação premiada com o Ministério Público no ano anterior. O caso foi parar no STF devido a uma queixa de que Arruda havia sido induzido ao crime, o que invalidaria a prova. Iniciou-se, assim, uma discussão no STF sobre a diferença entre “flagrante preparado” e “flagrante esperado”. A primeira expressão refere-se a um método de obtenção de provas muito usado nos Estados Unidos para prender potenciais terroristas islâmicos, em que policiais infiltrados instigam extremistas a dar os primeiros passos para a preparação de um atentado. Em inglês, essa tática é chamada de sting operation. No flagrante esperado, a postura dos policiais ou de colaboradores é passiva. Eles apenas acompanham e registram o desenrolar de um ato criminoso. No caso de Arruda, o STF entendeu que a operação foi legal e não extrapolou os limites estabelecidos em lei. “No Brasil, assim como na França, que tem um sistema jurídico mais parecido, o flagrante preparado não é permitido. Nossa lei respeita o direito de uma pessoa não produzir provas contra si mesma. A polícia só pode apurar a prática de um crime já consumado”, explica Fernando Castelo Branco, advogado e professor de direito na Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo. Tanto no caso de Arruda quanto no de Joesley Batista, a Polícia Federal restringiu-se a monitorar atos ilícitos que iriam ocorrer de qualquer forma, apenas postergando a interrupção do crime para obter informações.
Apesar da diferença na cultura jurídica, os Estados Unidos são uma inspiração para investigadores brasileiros. Oito em cada dez casos julgados pelos tribunais federais americanos contam com algum tipo de colaboração do acusado. Os mais comuns são a confissão de culpa e o fornecimento de nomes e informações que ajudem a desmontar uma organização criminosa. Em menor proporção, há os delatores que passam a atuar como colaboradores. Em investigações de narcotráfico, especificamente, em quase 100% dos casos que levam ao desmantelamento de quadrilhas, são empregadas ações controladas com a participação de réus-colabo-radores. Um dos casos mais célebres é o de Carlos Toro, ex-membro do Cartel de Medellín, da Colômbia. Ele se valeu de sua reputação como traficante para infiltrar-se em diversas organizações criminosas a serviço do DEA, o departamento antidrogas americano, obtendo em troca benefícios legais. “O réu-colaborador é muito importante por conseguir alguns tipos de prova que jamais seriam obtidos sem a atuação de uma pessoa que faz parte da estrutura criminosa”, diz Beatrice Edwards, diretora da organização Projeto de Responsabilidade Governamental (GAP, em inglês), em Washington, que oferece assistência a delatores.
Foi graças a uma ação controlada que o FBI, a polícia federal americana, desvendou, em 2015, um esquema colossal de corrupção na Federação Internacional de Futebol (Fifa). Iniciada anos antes, a operação fisgou, um a um, vários integrantes da entidade, que passaram a colaborar com as investigações. Um deles foi o brasileiro José Ha-willa. Depois de ter sido gravado por um réu-colaborador, Hawilla viu-se encurralado e também passou a colher provas para a polícia. Sua entrada na investigação foi considerada fundamental para que se descobrissem algumas das mais importantes ramificações dos esquemas da Fifa, o que resultou na prisão de sete diretores da entidade, entre eles o brasileiro José Maria Marin, que pagou 15 milhões de dólares para aguardar o julgamento em prisão domiciliar em Nova York. As ações controladas, como mostra a história, são o terror dos corruptos.
>> O INFILTRADO
No enredo da Operação Patmos, que sacudiu o mundo político na semana passada, o protagonista é o criminoso arrependido que resolve colaborar com a Justiça entregando seus cúmplices. Mas a nova fase da Lava-Jato teve outro personagem típico das histórias de mafiosos: o investigador que trai seus pares e a lei e, movido pela ambição, se deixa cooptar pelos bandidos.
0 procurador da República Ângelo Goulart Villela é acusado de ter vendido aos donos da JBS informações sobre a Operação Greenfield, que investigava irregularidades nos fundos de pensão. Deflagrada em setembro de 2016, ela incluiu entre os seus alvos os irmãos Wesley e Joesley Batista. A 10a Vara da Justiça Federal de Brasília chegou a determinar o afastamento de Joesley do conselho do grupo empresarial. A decisão foi revogada, mas, para não ser mais surpreendido pelos investigadores, Joesley decidiu “comprar” a colaboração de um deles. Em troca de uma mesada de 50000 reais, afirma o Ministério Público, o procurador repassava aos irmãos Batista dados sigilosos sobre as investigações. Na presença deles, chegou a ligar para um dos integrantes da força-tarefa pedindo informações, diz o MP. Também teria repassado aos empresários mensagens trocadas em um grupo privado da força-tarefa.
O roteiro da Patmos, no entanto, reservou um final infeliz para o procurador Villela. Delatado pelos próprios empresários que o cooptaram, ele está desde terça-fei-ra atrás das grades, preso preventivamente a pedido do órgão que integrou.
Fonte: Veja