Mercado exige cada vez mais garantias
A maior crise de crédito da história traz consigo um efeito colateral que acaba por realimentá-la, criando uma espécie de bola de neve que não para de crescer. Os participantes do mercado de derivativos têm exigido cada vez mais depósitos de garantias, e em dinheiro, contribuindo para um aperto maior na liquidez. Foi essa necessidade que quebrou a Lehman Brothers e que draga recursos da AIG, só para citar dois casos mais agudos.
O uso de garantias no mercado de derivativos de balcão (contrato entre duas partes) no mundo todo, depois de permanecer praticamente estável em US$ 1,33 trilhão no final de 2005 na comparação com dezembro de 2006, subiu mais de 60% em dezembro de 2007, para US$ 2,13 trilhões, segundo estima a International Swaps and Derivatives Association (ISDA), a associação dos participantes do mercado.
Em 2008, o valor cresceu certamente mais e tende a continuar a aumentar em 2009, na visão de Fabrice Tomenko, responsável pela área de gestão dessas garantias e colaterais do Global Securities Financing, da Clearstream, a terceira maior empresa de custódia e liquidação de títulos do mundo, adquirida pelo grupo Deutsche Börse. Ele deixa claro que nas bolsas e em todos os tipos de mercados de balcão nos quais o risco de crédito está presente (compra de papéis com compromisso de recompra -repo, do jargão em inglês- e empréstimos de títulos, por exemplo), o mesmo tem acontecido.
No Brasil, a tendência também se verifica. Em 2007, eram mais as bolsas que pediam o depósito de margens de garantia. Agora, depois do susto com o câmbio no final do ano passado e de perdas que passaram de US$ 2 bilhões para uma única empresa (no caso, a Aracruz), a situação mudou. A prática tende a ser adotada no mercado interno de balcão nos contratos entre uma empresa e um banco e mesmo entre dois bancos diferentes.
“O uso de garantias não elimina os riscos do derivativo”, destaca Tomenko. “A prática reduz parte do risco de crédito e transforma parte dele em risco operacional, de liquidação, de mercado e de liquidez”, afirma ele, que vem ao Brasil para dar palestra no 3º Seminário Internacional de Renda Fixa, promovido pela Andima e pela Cetip, no dia 19 de março próximo, no Hotel Unique, em São Paulo.
O caso da AIG dá uma ideia da dimensão do fenômeno que Tomenko descreve. No dia 8 de março de 2008, a AIG anunciou que havia depositado US$ 9,7 bilhões em garantias no acumulado dos dois anos anteriores. Em agosto, no entanto, os depósitos haviam crescido para US$ 16,5 bilhões por causa de mudança nos preços de contratos de derivativos de crédito. Em 15 de setembro, a Lehman Brothers quebrou e no dia 16 a AIG teve suas notas de crédito (rating) rebaixadas, precisando de mais US$ 14,5 bilhões imediatamente naquele dia. Mas ninguém quis ou pôde dar crédito para a empresa, que precisou do primeiro socorro do governo americano.
Em 10 de novembro, a AIG tinha nada menos do que US$ 33,2 bilhões em garantias depositadas. A ajuda do governo dos Estados Unidos à empresa, que soma US$ 180 bilhões, não será suficiente se a AIG tiver sua nota de crédito rebaixada de novo. Dessa forma, apesar da perda recorde trimestral de US$ 61,5 bilhões anunciada pela seguradora, as agências de rating evitam rebaixar sua nota, pois isso traria necessidade de mais garantias, causando aperto maior no mercado.
Como mostra o caso da AIG, a necessidade de garantias será sempre influenciada pelos preços do derivativo, pelo risco de crédito do depositante da garantia e pelo preço da própria garantia, além da volatilidade percebida no mercado como um todo, segundo explica Tomenko.
No mercado brasileiro, a BM&FBovespa já exigia garantias mesmo no mercado de derivativos de balcão. A Cetip, que aceita como garantias títulos registrados nela própria (privados), está trabalhando de forma que possa passar a aceitar títulos públicos registrados no Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia), administrado pelo Banco Central e operado em parceria com a Andima. “A mudança deve vigorar a partir de meados deste ano”, revela Jorge SantAnna, diretor superintendente da Cetip, que também fará palestra no seminário no dia 19.
Tomenko explica que no mercado de derivativos de balcão internacional a maior parte – 83% – das garantias exigidas é dinheiro, geralmente euros ou dólares, “a garantia mais fácil de gerenciar”. Mas, de acordo com ele, em meio à crise de liquidez internacional atual, o dinheiro se tornou extremamente caro.
Há também o uso de títulos públicos, com apenas 14% do total de depósitos. “Precisaríamos de outros tipos de garantias, como papéis de empresas e ações, para evitar concentração de risco e aliviar o aperto de liquidez”, afirma. No entanto, segundo ele, a própria necessidade de segurança e aversão ao risco neste momento têm impedido a mudança.
Ele sugere ainda um gerenciamento integrado do uso das garantias em mercados diferentes, como por exemplo de derivativos, repo e empréstimos de títulos, de forma que os depósitos fossem o resultado de posições líquidas, criando um único pool de garantias que ajudaria a reduzir o aperto de liquidez. “Mas hoje as instituições financeiras não estão preparadas para essa fundamental transformação”, diz Tomenko.
Outra prática que poderia melhorar o mercado, segundo ele, seria o uso dos serviços de um terceiro no gerenciamento das garantias em contratos bilaterais de derivativos. A prática já é comum nos mercados de repo e de aluguel de títulos, diz. Isso significaria que uma terceira parte faria a chamada de margens, calcularia o valor dos colaterais, ficaria responsável pela sua liquidação, pelo processo de substituição e custódia, reduzindo riscos de liquidação e operacionais. As duas partes envolvidas no negócio poderiam se concentrar no mercado de derivativos em si e nas suas atividades pós-mercado.
Fonte: Valor