Um balanço que contempla a inteligência corporativa
Por Cecília Carboni
Quando se pensa em proteger uma empresa, o primeiro alvo é sempre o seu patrimônio físico. Seguranças são alocados para resguardar a sede e as fábricas, caríssimos sistemas de logística e monitoramento de cargas são implantados para evitar desvios e roubos, sem falar na contratação de seguros contra um sem número de acidentes e intempéries ou mesmo de auditores para afastar a possibilidade de fraudes. No entanto, alguns casos recentes comprovam que as principais fontes de prejuízo para uma corporação são bem mais complexas de se proteger, pois não representam ativos físicos. São os chamados ativos intangíveis, que não têm um valor claramente definido, expresso numa nota fiscal ou num balanço, mas que dependendo da maneira como forem gerenciados podem impactar tremendamente o resultado final da empresa.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a fabricante americana de brinquedos Mattel – cuja política de segurança dos produtos comercializados era tida como referência no setor. Quando, em agosto deste ano, a companhia descobriu que parte dos brinquedos produzidos na China continha tinta à base de chumbo que poderia causar danos à saúde das crianças, suas iniciativas para lidar com a crise não foram suficientes para segurar o preço de suas ações. De lá para cá, as perdas já chegam a 27%, a despeito dos esforços liderados pela própria Mattel, como a realização de testes em brinquedos antigos, a demissão dos fornecedores e o recall de mais de 21 milhões de peças, em três ocasiões distintas.
Na década de 90, ficou bem conhecido também o caso da Nike. O preço das ações listadas na Bolsa de Nova York caiu 57% quando a utilização de mão-de-obra infantil na produção de bolas veio à tona. E há milhares de outros casos em que aspectos como o relacionamento com fornecedores, a segurança dos produtos e a integridade dos serviços prestados atingiu de maneira indelével a reputação de uma determinada marca. “No passado, quando se queria atingir uma empresa, bastava atear fogo a um de seus depósitos para vê-la praticamente afundar”, observa Jorge Emanuel Reis Cajazeira, coordenador do Comitê de Capital Intelectual e Inovação da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ). “Hoje, uma campanha na mídia ou até mesmo um blog pode ter um efeito muito mais devastador sobre o valor de uma empresa e sua posição no futuro.”
O engenheiro, que supervisionou o estudo “A Gestão dos Intangíveis”, desenvolvido em 2005 pelo comitê, explica que o objetivo da pesquisa foi identificar a profundidade de inserção da inovação, do conhecimento e do capital intelectual na gestão das empresas brasileiras que buscam a excelência. A partir desse levantamento, a missão passou a ser identificar meios de incorporar definitivamente esta vertente da gestão moderna – que pressupõe a identificação, a mensuração e a administração dos intangíveis como parte do dia-a-dia das empresas. Para que isso possa acontecer de maneira efetiva, um grande passo ainda precisa ser dado: a criação de uma metodologia de mensuração de intangíveis que seja aceita universalmente.
Os modelos contábeis tradicionais não oferecem uma metodologia adequada para atribuir o devido peso no balanço a aspectos como capacidade de inovação, gerenciamento de riscos, relacionamento com fornecedores, acesso a crédito e financiamentos, ou mesmo políticas e iniciativas nas áreas ambiental e social. “O que existe hoje são iniciativas isoladas, lideradas por empresas, grupos de investidores ou mesmo firmas de auditoria”, explica Nir Kossovsky, secretário-executivo da Intangible Assets Finance Society, uma organização sem fins lucrativos, sediada nos Estados Unidos e formada por executivos de grandes empresas para fomentar o desenvolvimento de novos padrões e metodologias de mensuração de ativos intangíveis.
Kossovsky lembra que, durante as últimas duas décadas, foi criada uma série de modelos para atribuir valor aos intangíveis. Alguns deles foram amplamente adotados por companhias e até mesmo por governos, como o método do “Triple Bottom Line”, que analisa a atuação de uma empresa nas esferas econômica, social e ambiental. Outras duas metodologias bastante conhecidas das empresas brasileiras são o “Balanced Score Card”, que mede o desempenho de uma instituição a partir de quatro perspectivas (financeira, do cliente, dos processos internos e do aprendizado), e o “Valor Econômico Agregado”, também conhecido como EVA , que ajusta o lucro financeiro de uma empresa de acordo com custos relacionados aos intangíveis.
As grandes firmas de auditoria – como PriceWaterhouseCoopers, Deloitte, Ernst & Young e KPMG – também desenvolveram recomendações e modelos de cálculo para quantificar intangíveis sem, no entanto, convergir para uma base comum. Os especialistas no assunto dizem que o tão esperado padrão único é apenas questão de tempo. Em novembro do ano passado, os presidentes de seis grandes auditorias internacionais (BDO e Grant Thornton, além das quatro citadas acima) divulgaram, num simpósio em Paris, o ensaio intitulado “Mercado de capitais global e economia global – uma visão dos CEOs das firmas de auditoria internacionais” em que conclamavam o mercado a acelerar o processo de desenvolvimento de uma nova contabilidade, mais adequada à realidade atual.
A questão central colocada pelos CEOs era justamente a de contemplar nas demonstrações financeiras informações que permitissem aos acionistas e à comunidade financeira conhecer melhor o que acontece com uma empresa hoje e que irá impactar seus resultados lá na frente. O grau de inovação (que hoje pode ser indicado pelo número de patentes reconhecidas, mas que ainda carece de outras medidas mais amplas), o nível de satisfação dos consumidores, os prêmios recebidos tanto pela empresa quanto por seus executivos, as taxas de produtos defeituosos e de perdas, os níveis de satisfação e de rotatividade dos funcionários foram sinalizadores que o documento apontou como fundamentais e que deveriam ser medidos e divulgados de maneira mais ampla desde já.
Na visão dessas grandes firmas, as mudanças do mundo moderno exigem um novo modelo de prestação de contas sobre resultados. Além disso, o valor das companhias, cada vez mais, reside nos ativos intangíveis, que não são reportados de forma consistente nos atuais relatórios financeiros – a não ser por algumas poucas empresas que tomaram a frente do processo, como a Microsoft, a Dell e a seguradora sueca Skandia. No Brasil, a Suzano Papel e Celulose foi pioneira na divulgação de informações do tipo, em seu relatório anual relativo ao ano de 2004, publicado em março de 2005. Bernardo Szpigel, diretor de finanças, planejamento e relações com investidores da empresa, conta que, na ausência de um padrão oficial, a Suzano optou por inserir uma discussão sobre os ativos não-financeiros já identificados pela administração e a maneira com que estavam sendo trabalhados.
“Com o tempo, fomos aperfeiçoando esses relatos, mas ainda há um amplo caminho a percorrer, especialmente no que diz respeito à sua mensuração”, afirma Szpigel. Apesar de relativamente complexo, o trabalho desenvolvido pela Suzano partiu de um simples processo de mapeamento. O diretor financeiro explica que, a partir de questões levantadas durante o planejamento estratégico, foram identificados os ativos – físicos ou não – mais relevantes para as metas que a empresa se propusera atingir. “Depois de diagnosticar e quantificar esses elementos, passamos a cuidar para que tivessem desempenho cada vez melhor.” Com isso, a empresa foi capaz de entender exatamente os aspectos que melhor a diferenciavam em seu setor e este conhecimento acabou conduzindo uma completa revisão na estrutura organizacional da Suzano cerca de dois anos depois.
O organograma passou a ser dividido por unidades de negócios (celulose, florestal e papel) atendidas por áreas prestadoras de serviços. Tudo isso para intensificar diferenciais como o relacionamento com clientes, o desenvolvimento de lideranças dentro da organização e também promover uma maior responsabilidade por resultados. Bernardo Szpigel diz que o processo de desenvolvimento de um novo modelo organizacional é um bom exemplo de um dos principais benefícios trazidos pelo processo de gestão dos ativos intangíveis: transformar a empresa numa organização que aprende.
É por esse motivo também que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está trabalhando numa metodologia própria de avaliação de capital intangível, num projeto em conjunto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A proposta é criar um modelo que funcione como um demonstrativo complementar ao financeiro, uma espécie de inventário de ativos intangíveis, realizada a partir do preenchimento de um questionário padrão.
Com o questionário, também será possível ao banco atribuir uma espécie de rating, uma nota de classificação de risco baseada na “inteligência” da empresa. Essa nota irá auxiliar o banco no processo de avaliação das empresas e poderá até influenciar o custo do capital emprestado.
Para validar o modelo desenvolvido e garantir a sua implementação em 2008, um teste foi aplicado em quatro empresas de setores e portes distintos. Dividido em seis tipos de capital (estratégico, ambiental, de relacionamento, estrutural, humano e financeiro) o questionário abordava desde a capacidade de monitoramento do mercado e da formulação de estratégias até a inteligência financeira e a confiabilidade do administrador- passando pelo sistema de governança corporativa, capacidade de inovação, reputação, ambiente regulatório e redes de fornecedores e clientes.
Embraer, Genoa Biotecnologia, Suzano Papel e Celulose e a produtora de softwares de gestão Totvs consideraram que a metodologia proporciona um “bom entendimento ao financiador de cada empresa sob a ótica de sua capacidade competitiva e permite à administração da empresa estabelecer os ativos e as competências que devem ser construídos para dar conta da visão e da estratégia de longo prazo”, de acordo com relatório apresentado durante seminário realizado em outubro pelo BNDES.
A metodologia definitiva ainda será submetida a ajustes finais e deve ser bem recebida pelo mercado. Ela já conta com o apoio da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que regula o mercado de capitais brasileiro, e foi elogiada por investidores, que vêem na iniciativa um estímulo à inovação e à produção de conhecimento – já que empresas ligadas às áreas de tecnologia e de pesquisa científica têm seus capitais compostos majoritariamente por ativos intangíveis, como a produção de conhecimento.
Cajazeira, que coordenou o estudo da Fundação Nacional da Qualidade e também é gerente corporativo de competitividade na Suzano Papel e Celulose, elogia a iniciativa do BNDES. Ele lembra ainda que o potencial de geração de valor está justamente em quem desenvolve o conhecimento. “Com a terceirização da manufatura de produtos para os países emergentes o conceito de ´made in´ já não é mais o do lugar onde o produto foi fabricado e sim o de onde foi concebido”, afirma. Isso faz com que o conhecimento esteja muito concentrado nos países desenvolvidos e reforça a importância de se dar a devida atenção aos ativos intangíveis para reforçar a capacidade de competir globalmente.
Fonte: Valor