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Pé na estrada outra vez

A idéia de cair na estrada para ver o que acontece, sem um tostão, está guardada no baú das recordações juvenis do século XX, o período da história em que as idéias jovens tomaram a sala de jantar e começaram a ser ouvidas. O livro que incorpora e mimetiza esse primeiro jato de aspirações jovens faz 50 anos no dia 5. Chama-se “On the Road – Pé na Estrada”, na tradução brasileira tocada por Eduardo Bueno – esse mesmo dos livros de história – e Antonio Bivar, publicada originalmente em 1982 pela editora Brasiliense, e disponível agora em formato de bolso pela L&PM.
O autor, Jack Kerouac (1922-1969), já o havia escrito em 1951. Foram seis anos de um verdadeiro calvário, até que “On the Road” chegasse às livrarias.
Kerouac sobreviveu apenas 11 anos após a publicação. Morreu com US$ 90 na conta, na casa da mãe, amargo e enfurecido pelas hordas hippies que tomavam as ruas, inspiradas, ironicamente, pelo próprio romance que o consagrou. Ele foi a primeira celebridade a saltar do meio beat, que ele ajudara a batizar. E foi também o seu mártir. Ao receber o pacote embrulhado em papel pardo e cheirando a novo com os primeiros seis exemplares do livro, estava em companhia de amigos, entre eles Neal Cassady, o personagem principal, a fonte de onde jorra toda a energia de “On The Road”. Ele folheou as páginas de um dos exemplares, entregou outros a Cassidy e amigos, e todos passaram a procurar os trechos que lhes seriam familiares. Porque a história que Kerouac havia contado era na maior parte autobiográfica. Os amigos tentaram também fazer uma festa, mas não deu certo. Kerouac foi dormir com a namorada, Lou Anne.
“On the Road”, que custou três semanas frenéticas de datilografia num rolo de telex de 36,5 metros, no qual mal se consegue divisar, hoje, os parágrafos ou quaisquer outros espaçamentos
Lou Anne estava ao seu lado, na manhã do dia seguinte, quando o escritor leu a crítica de Gilbert Millstein em “The New York Times”. O artigo enfileirava uma lista de elogios ao livro. Kerouac viveria então seu último dia de anonimato. Às 9h30 de 6 de setembro de 1957, o telefone começou a tocar e não parou mais. “On the Road” começava a se transformar num best-seller e Kerouac , a mergulhar no inferno da celebridade instântanea. Nos anos seguintes, faria questão de corresponder ao mito e ao mesmo tempo pisar em cima dele: aparecia bêbado em público e distribuía diatribes e palavrões sempre que requisitado. Engordou, virou uma estranha caricatura beat, de camisa de flanela xadrez, escondido com a mãe inválida e a mulher Stella Sampas, amiga de infância, numa casinha em Lowell, Massachusetts, onde havia nascido.
Quando os rapazes da “Paris Review” foram entrevistá-lo (e um deles era filho do escritor William Saroyan), bateram à porta da casa sem campainha e quem atendeu foi a mulher, que não quis saber de entrevista nenhuma. Mas eles furaram o bloqueio e passaram longas horas bebendo e papeando com o velho beat, que inventou versos ao vivo e falou sem parar, bem no estilo das páginas de “On the Road”. Dois anos depois, estava morto.
“On the Road” custou três semanas frenéticas de datilografia num rolo de telex de 36,5 m. Mal se consegue divisar, hoje, os parágrafos ou quaisquer outros espaçamentos. O rolo se explica pela velocidade do escritor, que não podia perder tempo trocando o papel da máquina, o que valeu a célebre tirada do colega Truman Capote: “Isto não é literatura, é datilografia”. O relato autobiográfico nasceu graças a dois combustíveis, café e anfetaminas.
O romance narra as aventuras de Sal Paradise (alter ego do escritor) e Dean Moriarty (Neal Cassady) pelos quatro ventos dos EUA. E o que eles vão conhecendo pelo caminho é uma fauna de personagens do submundo, solitários, malucos, deserdados e mulheres de diferentes matizes. Tudo na base do dedo em riste, para pedir carona, hotéis invariavelmente vagabundos, drogas, camaradagem, encontros, desencontros e muita bebedeira.
Moriarty era um ladrão de automóveis que acabara preso durante cinco anos. Ao sair da cadeia, não tinha outra idéia que não fosse procurar insanamente a liberdade total. A fama precede a sua chegada a Nova York, a nascente central beat, comandada pela trindade composta de três indivíduos completamente diferentes entre si: Kerouac, católico e ex-promessa dos esportes como jogador de futebol americano; Allen Ginsberg (Carlo Marx no livro), poeta judeu atormentado; e William Burroughs (Old Bull Lee), herdeiro de uma empresa de máquinas de escrever que vivia entre traficantes e bandidos ligeiros. Quando Cassady chegou à cidade, Kerouac virou seu melhor amigo, Ginsberg se apaixonou por ele, e Burroughs não foi com a sua cara. Estamos ainda na segunda metade dos anos 1940, quando tudo acontece. O resultado mais nobre da bagunça provocada por Cassady no ninho beat são as viagens que dariam origem a “On the Road”.
O que está em “On the Road” sobreviveu aos cortes a que Kerouac foi forçado depois de peregrinar por infinitas editoras que se recusariam a lançar o romance. A Viking só topou depois de uma exaustiva copidescagem. A versão que saiu em 1957 tinha menos sexo e menos drogas. Não tinha rock porque a praia dos rapazes era o jazz, o bebop de Miles Davis e Charlie Parker, que os beats freqüentavam. Ainda assim, o romance seria influência decisiva para os roqueiros que começavam a sacudir as cadeiras. Há um filme no Youtube que mostra a visita de Bob Dylan ao túmulo de Kerouac, acompanhado de Ginsberg. “On the Road” mudou não só a vida de Dylan, mas a de muitos outros.
Nos tempos ásperos de hoje, em que a tecnologia é onipresente, fica difícil imaginar as viagens desprotegidas que Kerouac e Cassady empreenderam pela América. Eram como parte de minúscula confraria dos últimos caubóis modernos. Hoje não haveria mais espaço para jovens viajando sem monitoração. E no entanto, “On the Road” continua de pé. Que livro contemporâneo agüenta 50 anos?
Walter Salles deve começar a filmar a adaptação do romance em breve (já fez um documentário, em que percorre as paragens citadas no papel). Não faz muito tempo, Johnny Depp, ídolo das novas gerações por causa de Jack Sparrow, de “Piratas do Caribe”, comprou a capa de chuva do escritor por milhares de dólares. Pensar que Kerouac viajava carregando um único saco de marinheiro, onde cabiam todas as suas coisas. Hoje, os herdeiros brigam por um espólio de milhões.

Fonte: Valor

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