Um país se faz de homens e livros
Por Márcio Sampaio de Castro, para o Valor
30/03/2007
O Brasil é um país que lê pouco e mal. Em média, o brasileiro lê 1,8 livro por ano, segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL). Os modestos números ganham contornos piores se comparados aos dos vizinhos Uruguai e Argentina, onde as pessoas lêem quatro livros por ano. Quando confrontados à média européia, os dados são irrisórios. Na terra de Shakespeare e Cervantes, a média é superior a 20 títulos anuais. Mesmo diante de quadro tão cinzento, o Brasil tem acompanhado, nos últimos tempos, importante fenômeno que procura fazer frente a essa situação: a vitalização dos prêmios literários.
“Os prêmios contribuem para aumentar o número de leitores”, afirma o escritor Milton Hatoum, grande vencedor de prêmios literários, como o Jabuti e o Portugal Telecom, no ano passado, com o seu “Cinzas do Norte”. Criado na década de 1950, o Jabuti é o mais tradicional dos prêmios. Chega em 2007 à sua 49ª edição, distribuindo R$ 120 mil, repartidos em 20 categorias. Mesmo sendo um dos mais antigos concursos brasileiros, somente nos dois últimos anos conseguiu superar a marca das duas mil inscrições, o que demonstra por um lado a longa jornada que trilhou para alcançar esses números e por outro o crescente interesse de autores e editoras.
“Um prêmio literário, sem dúvida, desperta o interesse do mercado. Cria um misto de reconhecimento para a obra e o autor e, ao mesmo tempo, aumenta o interesse por falar em literatura”, afirma Rosely Boschini, presidente da CBL, organizadora do prêmio.
A CBL não esconde os interesses mercadológicos que acompanham a organização e divulgação do Prêmio Jabuti. É comum encontrar nas livrarias títulos embalados com etiquetas que dão destaque à informação: “finalista do Prêmio Jabuti”. Mas Rosely garante que o primeiro compromisso dos organizadores é com a importância da leitura.
“Organizamos feiras de livros e levamos os autores, geralmente os finalistas, para conversar com os leitores. A partir de um prêmio, o autor abraça a causa de estar mais próximo do público. Um exemplo é o Gabriel o Pensador (ganhador em 2006 na categoria infantil) que tem sido muito procurado para falar com o público infanto-juvenil. Veja, falar de livro e não de música.”
O jornalista Caco Barcellos, vencedor da principal categoria do Jabuti em 2004, com o romance não ficcional “Abusado”, concorda. “A conquista do prêmio serviu para tornar a obra mais conhecida. Neste ano, no vestibular de uma das mais tradicionais faculdades de jornalismo do país, o ´Abusado´ estava ao lado de autores como Mia Couto, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos como leitura obrigatória. O reconhecimento é um incentivo muito grande e essas premiações servem para isso”, diz Barcellos, que já prepara novo livro.
Mas se o Jabuti se aproxima de meio século de história, figurando como uma importante referência do meio literário brasileiro, prêmios mais jovens começam a ganhar espaço entre autores, críticos e editoras. Um deles é o Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa, que entra em sua 5ª edição. Mais enxuta, a premiação acolhe obras em diversos estilos, como romance, conto, poesia, crônica, entre outras, e paga o maior valor oferecido a escritores no Brasil. São R$ 150 mil, distribuídos entre os três melhores títulos, cabendo ao vencedor R$ 100 mil.
Um importante diferencial desse prêmio é o modelo de composição do júri. Inicialmente formado por professores, críticos e jornalistas do meio literário das cinco regiões do país, esse colegiado indica as 50 melhores obras inscritas e escolhe entre seus integrantes 11 nomes para compor uma segunda etapa de avaliação. O processo segue se afunilando até a terceira etapa, quando são indicados os finalistas, que serão julgados por seis integrantes restantes do júri original e mais os quatro curadores do prêmio.
“A longevidade e ampliação de um prêmio têm muita relação com a transparência. Quem está fazendo e como está fazendo. Nosso júri inicial tem 350 pessoas. O prêmio morre quando se transforma em algo de interesse pessoal. Ele tem que ser algo vivo e que se transforma. Esperamos que o Portugal Telecom se transforme no grande prêmio da língua portuguesa”, afirma Selma Caetano, uma das curadoras do prêmio.
O primeiro passo nessa direção foi dado já para a edição deste ano. Títulos escritos e publicados em português fora do Brasil estão autorizados a concorrer à premiação máxima. “Percebemos que agora é preciso aumentar o intercâmbio cultural. Temos, por exemplo, coisas incríveis na literatura africana, muito próximas de nossa realidade, que ignoramos”, arremata a curadora.
Outra premiação que mobiliza escritores nos países onde se fala a língua portuguesa é o Prêmio Camões. Criado em 1988 pelos governos brasileiro e português, o Camões confere um polpudo cheque de 100 mil euros ao vencedor, mas sua configuração, com apenas seis pessoas no júri, sendo dois portugueses, dois brasileiros e dois representantes do continente africano, lhe confere um ar um tanto quanto elitista, premiando nomes já consagrados e distanciando-o dos não-iniciados no mundo das letras.
Já um dos prêmios brasileiros com maior apelo popular caminha neste ano, a exemplo do Portugal Telecom, para sua 5ª edição. Nascido da Jornada Nacional de Literatura, promovida na cidade gaúcha de Passo Fundo, desde o início dos anos 1980, o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura é um dos momentos altos do evento, marcado pela presença de diversos autores brasileiros e estrangeiros, que debatem com o público, além de realizar seminários, apresentações musicais, teatrais e exposições. O vencedor do prêmio leva para casa R$ 100 mil e, de quebra, pode fortalecer algumas convicções.
“Essas premiações representam uma qualidade de vida melhor, pelo menos no meu caso. Significam que posso viver de literatura por algum tempo, num país onde poucos podem viver disso”, afirma Hatoum. Mas ele adverte que o grande responsável pela formação de público leitor é a escola, não os prêmios. “Muitas vezes uma pessoa pode até comprar um livro, mas não está preparada para lê-lo. É preciso investir mais nas bibliotecas públicas, nas escolas e também no professor. Esta é uma questão fundamental.”
Parece correto supor que o crescimento dos prêmios literários brasileiros ainda não os aproxima de grandes prêmios internacionais, como o espanhol Cervantes ou o britânico Booker Prize, exatamente por causa de fatores estruturais que afastam grande parte dos brasileiros do universo literário.
“Deveríamos ter, em vez de cinco ou seis grandes prêmios, 50 ou 60. Nossa produção não deve nada a outros países e os prêmios são reconhecimento desse trabalho. Para chegarmos a esses números, o Brasil precisa ser um país de leitores, de maneira que ocorra um reflexo na sociedade, na economia, enfim para que o país possa crescer”, diz Rosely Boschini.
Esse dia parece um pouco longe, mas, de qualquer maneira, o crescente vigor dos prêmios literários indica que novos e amplos horizontes se apresentam para autores, editoras e leitores.
Fonte: Folha de São Paulo