Profissionais preferem se demitir a deixar o home office
Quando o relógio marcava 6h, Rael Souza, morador de Santo André (SP), já estava pronto para mais um dia de trabalho. A ida e volta até ao escritório, na zona sul de São Paulo, incluía uma caminhada de 20 minutos, dois ônibus, dois trens e dois metrôs. Quase 5h de deslocamento por dia, cinco dias por semana.
O jovem profissional de TI trabalhava remotamente até o ano passado, mas sua empresa foi adquirida por outra, que exigia o presencial no escritório. Em quatro meses, ele preferiu pedir demissão e passar a atuar como motorista de aplicativo.
“Era desgastante. Não tinha tempo para me cuidar e já chegava cansado no trabalho, o que afetou a minha produtividade. Não via perspectiva e repensei minha carreira.”
A história de Rael é um retrato, entre tantos outros, de tendências que imperam sobre o mercado de trabalho: a retomada do presencial e a queda na oferta de vagas home office. O g1 mostrou o fenômeno em reportagem de fevereiro.
Em paralelo, o mercado de trabalho brasileiro está em franco aquecimento, o que favorece a mobilidade de emprego. Assim como Rael, quase 8,5 milhões de trabalhadores deixam seus empregos de forma voluntária em 2024.
O Ministério do Trabalho realizou uma pesquisa com 53.692 desses demissionários, e revelou que o fim do trabalho remoto pode ter influenciado para que os profissionais tenham deixado o emprego.
Abaixo, confira algumas respostas:
15,7% citaram a falta de flexibilidade da jornada.
21,7% mencionaram dificuldade de mobilidade entre casa e trabalho.
9,1% apontaram a necessidade de cuidar de crianças ou outros membros da família.
Além disso, um levantamento com 3,5 mil profissionais de todo o mundo mostrou que 33% dos executivos que tiveram que voltar ao escritório estão pensando em deixar suas empresas por causa disso. O estudo foi realizado pela Gartner, uma empresa de pesquisa em recursos humanos.
Problemas com mobilidade, como tempo de viagem e lotação, não são os únicos fatores que têm contribuído para a impopularidade do presencial.
Medo de assaltos, importunação sexual, falta de tempo para se qualificar, e cuidar da saúde e passar mais tempo com colegas de trabalho do que com a própria família são outras motivações que levaram profissionais entrevistados pelo g1 a rejeitarem empregos presenciais, mesmo que isso significasse perdas financeiras.
A seguir, conheça a história desses trabalhadores e entenda mais sobre o tema a partir dos seguintes pontos:
‘Presencial é um inferno’
Mesmo com formação em Mecânica, Tecnologia da Informação e pós-graduação em Psicologia Organizacional e Gestão de Projeto, a mudança abrupta para o trabalho presencial levou Rael a pedir demissão para atuar temporariamente como motorista de aplicativo.
A ideia é juntar o valor necessário para custear uma viagem para Austrália, onde ele pretende ficar um tempo até aprimorar o inglês e aumentar sua experiência profissional.
“Também busco qualidade de vida, coisa que eu não estava tendo”, afirma Rael, que admite que seus planos podem mudar apenas se conseguir uma oportunidade remota.
A lotação do transporte público é uma das queixas mais comuns entre trabalhadores presenciais. Com cada vez mais empresas retornando aos escritórios, a tendência é de piora, já que o número de usuários tem aumentado gradualmente.
Um levantamento feito pelo g1 mostra que o número de usuários nos trens, metrôs e ônibus da capital paulista tem voltando a patamares próximos ao pré-pandemia.
O diagnóstico reúne dados da Secretaria dos Transportes de São Paulo, da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos e da SPtrans.
Os exemplos são muitos. Luciano Freitas ocupava um cargo de liderança dentro de uma startup, mas optou pela demissão — mesmo sem outro emprego na manga — após enfrentar problemas com o modelo presencial de trabalho.
“2h30. Foi o tempo que levei para chegar em casa numa noite de chuva: trem, metrô e ônibus lotado (…) No dia seguinte, pedi demissão sem outro emprego, sem grande reserva de dinheiro, só exausto da insanidade que é a cultura presencial a qualquer custo'”, desabafa.
Michelle Barbosa, recrutadora de tecnologia, é outra profissional que descarta voltar ao trabalho 100% presencial, mesmo sob a promessa de aumento salarial.
‘”Conheci o céu [trabalho remoto] e isso tirou a venda dos olhos. Mostrou que é possível ter uma vida além do trabalho. Não tem como voltar ao inferno.
O desabafo de Michelle pode ser visto como um exagero para alguns, mas é resultado de diversas experiências negativas que ela teve ao longo de seus mais de 20 anos de modelo presencial. Moradora de Mauá (SP), ela gastava muito tempo com locomoção.
O sentimento de insegurança é uma preocupação comum. Uma pesquisa do Datafolha com mais de 2 mil pessoas mostra que 86% delas se sentem inseguras nas ruas de suas cidades.
O medo entre mulheres vai além da violência nas ruas. Um levantamento da Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) com 3,5 mil pessoas em 10 capitais mostrou que 3 em cada 4 mulheres já sofreram assédio, sendo que 51% desses casos ocorreram dentro de transportes públicos.
Em 2023, pelo menos um caso de importunação sexual foi registrado no transporte público da capital paulista a cada 14 horas, segundo Secretaria da Segurança Pública (SSP).
Embora trabalhadores remotos também estejam suscetíveis à criminalidade em momentos fora da jornada ou percurso ao trabalho, passar mais tempo em casa pode transmitir a sensação de proteção para muitos deles.
Michele também recorda das vezes em que ficou ilhada em enchentes, fazendo o retorno para a casa fosse ainda mais demorado. Por ter passado tanto tempo fora de casa, ela ainda guarda o sentimento de não ter sido uma mãe tão presente.
“Eu saia de casa sem ter a segurança de voltar (…) o presencial me ausentava em casa. Defendem tanto a relação corporativa, o quanto ela é importante para aumentar a produtividade, mas eu não tinha contato nem com a minha própria família”, lamenta.
Fonte: G1