No feminicídio, polícia investiga a vida pregressa da vítima
O delegado Victor Leite, da Polícia Civil de Pernambuco, afirma que o procedimento padrão de investigação para casos de morte de mulheres é, primeiro, investigar a vida pregressa da vítima para saber o que ela fazia, com quem ela andava e onde trabalhava. Dessa forma, a causa da morte é delineada e, consequentemente, é possível saber se houve feminicídio ou não.
Com as primeiras informações da família, já conseguimos identificar se foi feminicídio, ou seja, se a vítima morreu em decorrência de ser mulher, se mataram por achar que a mulher era inferior, ou se foi motivada por outra hipótese. Por exemplo, se a mulher morreu por fazer parte de alguma organização criminosa ou quadrilha, diz o delegado Victor Leite.
De acordo com o delegado Janderson Lube, de uma forma geral, os feminicídios têm um indicativo de autoria do crime preexistente, já que os autores geralmente são conhecidos das vítimas, como ex-maridos. Por conta disso, o delegado afirma que há maior facilidade de investigação.
Os crimes de feminicídio, no geral, ocorrem em um ambiente doméstico, muitas vezes praticado dentro da própria casa da residência do casal. Diante também das circunstâncias de fuga do autor, do companheiro da vítima, nós chegamos a essa constatação de que é feminicídio logo no início das investigações, diz.
Nos casos de homicídio, a dificuldade de investigação costuma ser maior, ainda mais os que envolvem drogas. São casos muito difíceis de ser apurados por conta das circunstâncias. O crime ocorre de madrugada ou à noite, tem a ausência de testemunhas, e os locais onde esses crimes ocorrem têm lei do silêncio. Gera uma série de dificuldades para prosseguir as investigações, afirma.
Investigação
Os dados mostram que muitos casos de feminicídio não eram registrados como tal logo após a sanção da lei. Isso vem mudando. Em agosto do ano passado, por exemplo, Marly Ferreira Pereira, de 43 anos, foi morta pelo marido em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Após esfaquear a mulher, Aldair Pinho de Souza, de 57, tentou se matar, de acordo com a Polícia Militar. O caso foi registrado como homicídio, mas acabou denunciado como feminicídio pelo Ministério Público.
“A denúncia se baseou nos dados alcançados na investigação. Temos a segurança quanto à autoria porque o acusado é confesso. Sabemos que o acusado e a vítima tinham um relacionamento de companheiro, um relacionamento estável. Sabemos que ambos se encontravam embriagados. Sabemos que o homicídio foi cometido a facadas. E nesse quadro, estando absolutamente claro que o homicídio foi cometido num contexto de convivência doméstica ou familiar entre acusado e vítima, temos um feminicídio. Ou seja, um homicídio qualificado porque, cometido contra uma mulher, por uma condição relacionada ao seu gênero. Por sua vez, marcado pela fragilidade em que a mulher mais acentuadamente se encontrava, pela vulnerabilidade em que ela, via de regra, se encontra em face do agressor num espaço de convivência doméstico familiar”, afirma o promotor Henry Wagner Vasconcelos de Castro.
No caso do assassinato de Laniele Santos Duque da Silva, de 20 anos, em Mauá, na Grande São Paulo, a qualificadora foi colocada já no registro da ocorrência.
Ela foi baleada pelo marido, que foi preso e aguarda o julgamento. Um mês antes do crime, ela postou no Facebook: “Jamais trate uma mulher como lixo”.
“A lei 13.104, de 9 de março de 2015, parágrafo 1º artigo 2, considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação com a condição de mulher. Nesse caso, todas essas circunstâncias foram objetivamente verificadas. Havia já pela narrativa de testemunhas ouvidas um histórico de violência”, afirma o delegado do caso, José Carlos de Melo.
“Tomamos todas as providências, todos os cuidados necessários, ouvimos testemunhas, ouvimos parentes e tudo indicou ter havido nesse caso realmente um feminicídio. A violência doméstica colocando a condição do gênero de mulher, passando por uma espécie de tortura psíquica, física, que se desenrolou por algum tempo.”
“Ele a matou pelo fato de ela ser mulher”, afirma a mãe de Laniele, Marlene Maria dos Santos.
A mãe do acusado, Angela Maria da Silva Azevedo, diz que sempre educou o filho a respeitar as mulheres. “Sempre falei que, se você está em um relacionamento que não dá certo, você separa, cada um para o seu lado, porque é o certo. Mas se foi ele realmente, que ele pague o que ele fez. Se a Justiça provar que foi ele, que se faça justiça”, diz a mãe, que não falou com o filho desde o crime.
Ciclo de violência
Segundo delegados e promotores ouvidos pelo G1, o crime de feminicídio costuma ser o fim de um longo ciclo de violência sofrido pela mulher.
De acordo com Janderson Lube, a maior parte dos casos é marcada por uma progressão de violência doméstica. “A mulher é vítima de agressões inicialmente e, depois, essas agressões viram um homicídio propriamente dito”, afirma.
Em muitas vezes, o crime é precedido por denúncias feitas pela vítima ou mesmo de medidas protetivas contra os antigos companheiros. Em outras situações, porém, o medo, a vergonha ou mesmo o amor impedem a mulher de denunciar seu agressor.
“A mulher resolve não denunciar por estar ligada intimamente ao agressor ou por ter uma dependência econômica e afetiva quanto aos filhos, ou mesmo por achar que pode modificá-lo. Então há todo um ciclo de violência contra a mulher que é diferente da violência comum, da violência em um roubo, em outro tipo de delito que não envolve uma relação íntima de afeto”, diz Ronaldo Costa Braga, promotor do Paraná.
Foi o caso de Josete do Rocio Ferreira, de 54 anos, que morou 13 anos com o homem denunciado pelo seu assassinato na cidade de Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba. Segundo a delegada Tatiana Guzela, Josete ficou no chão da sua casa durante três dias antes de ser socorrida, até ser encontrada pela irmã. Ela morreu no hospital.
“Tinha um histórico imenso de violência nos últimos anos, e ela [Josete], por ser muito apaixonada pelo homem, nunca se preocupou com a sua vida. Segundo o depoimento dos familiares, ela dizia que, se tivesse que morrer nas mãos dele, assim ela queria que fosse”, diz a delegada Tatiana Guzela.
Segundo Costa Braga, a esperança é que a divulgação da Lei do Feminicídio e de dados de violência contra a mulher aumente a consciência coletiva sobre a importância em denunciar os agressores.
“Nós estamos presenciando movimentos no sentido de empoderar a mulher nesse tipo de situação. Eu acho que tem o poder de mudar a sociedade e eu espero que consiga. Os números ainda são muito altos, mas eu acho que a sociedade está se transformando, sim”, diz.
Fonte: G1