O Bitcoin não tem nada de Revolucionário
Gustavo Franco está de volta. O economista carioca de 61 anos que ganhou notoriedade como um dos criadores do Plano Real andou fora do palco desde sua passagem pela presidência do Banco Central, no final dos anos 90. Ao longo da última década, seguiu carreira como professor da PUC-RJ, ajudou a fundar a Rio Bravo, uma das principais gestoras de investimento do país, e escreveu muitos e variados artigos descendo o sarrafo nos governos do PT.
Nos últimos meses, no entanto, seu nome ganhou holofotes novamente: Franco foi mostrado como personagem principal do longa-metragem Real – O Plano por Trás da História (ele diz gostar mais do livro 3.000 Dias no Bunker, do jornalista Guilherme Fiúza, no qual o filme é baseado), fechou um acordo para trabalhar junto ao Nubank, a Fintech mais badalada do país, e provocou marolas na cena política ao trocar o PSDB, ao qual era filiado desde 1989, pelo Novo, depois de assinar uma carta criticando a (falta de) postura do partido frente às denúncias de corrupção no governo Temer.
Agora Franco está lançando o livro A Moeda e a Lei, pela editora Zahar. Na obra, ele descreve a construção das diversas moedas que o Brasil teve entre 1933 e 2013, à luz das instituições e da legislação de cada época, analisando de modo crítico a atuação – em sua visão, constantemente equivocada – das autoridades monetárias federais. De passagem por São Paulo, Franco conversou com NEG?CIOS sobre o futuro do dinheiro no Brasil e no mundo. Demonstrou certa descrença e preocupação a respeito das criptomoedas. Só um libertário muito radical imaginaria que um algoritmo é melhor que um Banco Central. Também alertou para a insatisfação dos clientes com o sistema bancário tradicional e avisou: É o pagamento por celular que vai renovar o setor de maneira espetacular. A seguir, trechos da entrevista.
ÉPOCA NEG?CIOS O seu novo livro analisa a trajetória do dinheiro no Brasil. Para onde o dinheiro está caminhando?
GUSTAVO FRANCO: Esse livro nasceu de uma antiga perplexidade minha. Ainda na época da criação do Plano Real, havia uma quantidade enorme de leis de 1933 que tivemos de modificar. Esse ano foi uma data importante porque, além do próprio papel-moeda, surgiram no país diversas leis nas áreas bancária e cambial. Demoramos muitas décadas para nos acostumarmos com esse conceito de dinheiro no formato de papel-moeda. A partir do período iniciado em 1933, o país teve oito padrões monetários, desde os Réis até o Real. Percebe-se que cada uma dessas etapas tem uma particularidade histórica que gera lições até mesmo para nosso cenário atual. E não deixa de ser curioso que, quando parece que a gente está se sentindo mais confortável com essa ideia de papel-moeda, é justamente o momento em que ele está desaparecendo em várias partes do mundo, substituído pela moeda digital.
NEG?CIOS O sr. classifica o surgimento da moeda como destruição criadora, se referindo ao economista Joseph Schumpeter. As moedas digitais também destroem e criam?
FRANCO sim, porque as formas pelas quais as moedas digitais estão se desenvolvendo são surpreendentes. Elas estão criando oportunidades empresariais diferentes e inesperadas, como mostra a grande variedade de fintechs dos mais diversos tipos que estão aparecendo no Brasil e no mundo. Vão surgir daí empresas muito grandes. Alguns dos campeões do futuro estão aparecendo neste instante. Por outro lado, eu não vejo nada de especialmente revolucionário no Bitcoin ou nas outras centenas de criptomoedas parecidas. Essas moedas se confundem com as ações das companhias que as emitem. Tanto que no lançamento dessas companhias se usa a expressão ICO [Initial Coin Ojfering], para imitar o IPO [Initial Public Ojfering] do mercado de capitais. Muita gente ainda não entendeu que, desde o seu surgimento, a moeda é uma espécie de ação preferencial do Banco Central ao portador. O mesmo vale para as criptomoedas, que são expressões de companhias que emitem esse valor digital. Mas essas são companhias que não fazem nada, não querem dizer nada e que vão concorrer com nações, cujos Bancos Centrais oferecem o mesmo produto. A ideia de que um algoritmo possa oferecer um instrumento de pagamentos de valor superior a uma moeda nacional me parece uma coisa meio… delirante. Só um libertário muito radical imaginaria que um algoritmo é melhor que um Banco Central. Tem gente que acha. Ok. Mas seguramente o comportamento do Bitcoin frente às taxas de Câmbio de outras moedas não recomenda que ele seja utilizado como moeda, porque é um negócio de uma volatilidade imensa.
NEG?CIOS Qual o papel delas, então?
FRANCO Acho que o Bitcoin e as outras criptomoedas devem ser entendidas como uma espécie de commodity, que envolve muita especulação, muita transação de uma contra a outra. Ele vai concorrer com as moedas das companhias de milhagem, com as moedas do Face- book, com as moedas do Alibaba. São ativos da era digital que vão ser trocados entre si. Mas moeda, moeda mesmo, é aquela na qual as pessoas desenvolveram confiança ao longo do tempo. São as moedas nacionais de países com economias sólidas. Acho muito difícil que isso se altere no futuro.
NEG?CIOS Como fica a posição dos Bancos Centrais com o crescimento das criptomoedas? A autoridade monetária nacional pode ser ameaçada?
FRANCO Não consigo vislumbrar isso hoje. Quem anda com uma certa preocupação são as autoridades do mercado de capitais, ao verem os ICOs. Não é um problema da moeda, da política monetária, mas desse mercado, porque algumas dessas criptomoedas são pirâmides, são coisas meio picaretas. E preciso que haja uma regulamentação sobre isso no sentido de explicar aos initeressados como a operação funciona e quais os seus detalhes, senão vira bagunça. Lembro de pelo menos um caso de ICO no qual a moeda foi hackeada e os caras tiveram de devolver o dinheiro para os investidores. Sempre houve gente pensando 24 horas por dia em como montar uma fraude. Existe falsificação de dinheiro desde que inventaram o papel-moeda. Existe bandidagem em qualquer tipo de atividade humana. Então sempre vamos ter de conviver com esse tipo de coisa.
ÉPOCA: Fala-se muito hoje no conceito de cashless society. Países tão diversos como Suécia e índia caminham nessa direção. Esse é um caminho sem volta?
FRANCO Creio que sim. A tecnologia facilita a vida das pessoas. Assim como antigamente você carregava a carteira no bolso, hoje você carrega o smartphone. E é ali que você vai ter um conjunto de possibilidades que reúne a moeda, o cartão de crédito, o cartão de débito, o cheque, todas as comodidades reunidas num único aparelho. Haverá facilidades de movimentação bancária que hoje são difíceis de conceber. Ainda não sabemos exatamente quais serão as soluções vencedoras, mas não há dúvidas de que o público vai escolher o caminho da maior comodidade. Hoje em dia, quem lida com bancos sabe que a comodidade não é a sua maior virtude (risos). E digo isso sobre as transações pela internet, porque se você vai a uma agência bancária o quadro é ainda pior. Tudo isso está com os dias contados. Se os bancos não se movimentarem, os competidores vão atacar e vão tirar proveito da insatisfação do público com essa maneira de fazer pagamentos.
ÉPOCA: O sr. está trabalhando em um desses concorrentes, o Nubank. As fintechs podem se tornar uma alternativa real aos bancos?
FRANCO o espaço para crescimento das fintechs é gigantesco: é do tamanho da insatisfação do cliente com o atual estado do relacionamento entre o sistema bancário e o usuário. Tem muito para melhorar. As empresas que apostam nessa área vão ter sucesso no futuro, e eu acho que o Nubank seguramente será uma delas.
ÉPOCA: Como imagina o banco do futuro? Ainda fará sentido a existência de grandes redes de agências?
FRANCO Pois é, uma das tendências é a redução no número de agências, porque muitos dos serviços vão se transferir para os aparelhos eletrônicos dos clientes. Provavelmente isso terá um impacto negativo no número de empregos na indústria bancária. Por outro lado, vai aumentar o número de postos que irão surgir nessas empresas que oferecem métodos digitais. Deverá haver, portanto, menos agências, menos gente envolvida e menos tempo gasto para fazer transações e pagamentos, à medida que esses meios vão sendo digitalizados. Também é muito provável que ocorra o que os técnicos estão chamando de unbundling, que é um termo difícil de traduzir, mas que significa desmanchar um conjunto de serviços financeiros que hoje acontecem todos dentro de um banco – como pagamentos, aplicações e transações – e pulverizá-los para toda uma série de instituições mais especializadas em cada função específica. Mais do que isso, ainda não me sinto seguro para diagnosticar (risos).
ÉPOCA: E na área das aplicações, como cartões de crédito e de débito, qual a tendência?
FRANCO O cartão é só um veículo. O que está muito claro é que vai mudar seu meio físico, do plástico para o celular, que oferece diferentes possibilidades e poderá revolucionar sua operação. Na China, por exemplo, já se usa muito o leitor de QR Code do aparelho, da mesma forma como usamos aqui as maqui- ninhas. É por isso que um camelô chinês já recebe seu dinheiro por celular. Isso mostra que tem uma revolução prestes a acontecer no mundo dos cartões de crédito. As moedas dos nossos tempos vão ficar cada vez mais imaginárias. Terão sua identidade reforçada como instrumento de compra, mas a forma como se dará o pagamento vai ser outra. Vamos falar cada vez menos de meios de pagamento e cada vez mais de tecnologias de pagamento.
ÉPOCA: Mas enquanto em diversos países da Asia e da África os pagamentos por celular já são comuns, por aqui ainda não decolaram. Por quê?
FRANCO Aí entra aquele velho provérbio, que a necessidade é a mãe da invenção. O Brasil teve um desenvolvimento maior de sua indústria bancária por causa da inflação. De alguma maneira isso nos obrigou a lidar com o problema e alavancou nosso sistema financeiro e bancário. Já na África, os problemas eram outros e o sistema de pagamento por celular veio suprir uma deficiência de infraestrutura. Foi mais fácil e menos custoso criar essa infraestrutura a partir de uma rede de celulares, que já existia, do que criar uma rede de agências em lugares distantes e manter papel-moeda circulando. O celular resolve esse problema. É uma tecnologia que se apresenta de modo revolucionário, em qualquer continente, porque é muito mais barata. Essa, aliás, é uma das vantagens que as fintechs vão encontrar: é muito mais fácil atuar nesse modelo do que no jeito i antigo. E essa rede também já está criada no Brasil.
ÉPOCA: Alguns críticos dizem que isso pode dificultar a vida de uma parcela menos instruída da população.
FRANCO Discordo totalmente. Acho que isso é uma tolice completa. Há números que mostram um aumento forte das transações feitas a partir de dispositivos móveis, junto com a expansão do número de aparelhos, Vale lembrar que isso só foi possível com a privatização da área de telefonia, sem a qual estaríamos 20 anos atrasados em matéria de telefonia celular. Temos hoje mais celular do que gente no país, e ninguém tem dificuldade de usar o aparelho ou fazer uma ligação. E besteira afirmar que brasileiro não sabe fazer conta, não sabe fazer contrato de trabalho, não sabe mexer no celular. É coisa do Brasil velho, de quem defende o Estado-babá e diz que é necessária uma ação redentora do Estado para ensinar o brasileiro a usar o celular. O consumidor, na verdade, é o rei. E ele quem vai decidir qual o melhor serviço para ele e quem vai mandar nessa nova indústria. Tudo isso vai renovar o setor de maneira espetacular.
Fonte: ÉPOCA negócios