Vinoterapia
Operadores do Direito de todo o país tem se deparado com inúmeras decisões judiciais que suscitam dúvidas e questionamento quanto aos limites da atuação do Poder Judiciário. Pode o Judiciário legislar nas lacunas da Lei? Pode o Judiciário fornecer interpretação contrária à redação clara e objetiva de um dispositivo legal (in claris no interpretatio)? Ou ainda, interpretar uma norma em sentido contrário à intenção do legislador? Não se pretende, aqui, exaurir todos esses complexos questionamentos, que avançam sobre campos do conhecimento que transcendem o Direito, como ciência política e filosofia, mas, tão somente, levantar alguns pontos que merecem atenção de toda a sociedade. O Poder Constituinte brasileiro adotou, na elaboração da Constituição de 1988, a chamada “Teoria da Separação dos Poderes” ou “Teoria da Tripartição dos Poderes do Estado”, desenvolvida por Montesquieu em sua obra prima, “O Espírito das Leis”. Segundo essa teoria, o Estado deveria ser dividido, de acordo com suas funções típicas, em três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. É a chamada sistematização jurídica das manifestações do Poder do Estado, que é uno por natureza. A teoria desenvolvida por Montesquieu é fruto de sua concepção essencialmente racionalista das Leis, na medida em que as normas emitidas pelo Poder Estatal não poderiam ser fruto de caprichos arbitrário do “soberano”. Neste sentido, Montesquieu concluiu que “só o poder freia o poder”, desenvolvendo o chamado “Sistema de Freios e Contrapesos” (checks and balances), o qual consiste na contenção da atuação de um poder pelos outros poderes. Contudo, atualmente o que se tem visto na atuação do Poder Judiciário brasileiro é a emissão de decisões que parecem afrontar a Teoria da Separação dos Poderes. Em especial, no que se refere ao mercado securitário, temos sido atingidos cada vez mais por decisões desse tipo. Vejamos. No que se refere aos seguros de dano (especificamente no seguro de automóveis), o Superior Tribunal de Justiça editou, recentemente, a Súmula nº. 465, a qual consolida a sua própria jurisprudência, no sentido de que é válida a transferência do contrato de seguro a terceira pessoa sem a prévia comunicação à seguradora, salvo se comprovado que o risco tenha sido agravado por conta dessa transferência. Contudo, tal entendimento já pacificado afronta diametralmente o disposto no § 1º do artigo 785 do Código Civil, que prevê a possibilidade de transferência do contrato de seguro de dano a terceiro, quando há a alienação ou cessão do bem segurado. Não obstante, na medida em que a apólice é um documento contratual nominativo, tal transferência somente produziria efeitos com relação ao segurador “mediante aviso escrito assinado pelo cedente e pelo cessionário”. Ora, além da previsão legal clara, o teor do dispositivo legal atacado é totalmente coerente com a técnica securitária, na medida em que a precificação do seguro de dano é aferida não somente com relação ao valor do “interesse segurado”, mas, concomitantemente, com base na forma como este bem é utilizado, e, ainda, no perfil do próprio segurado. Ou seja, não se trata de um preciosismo formal, a comunicação da transferência prevista na Lei. Trata-se de uma necessidade real da seguradora, que tem o direito e o dever de analisar e precisar os riscos de maneira adequada, sob pena de a má precificação causar, não só prejuízos a ela, mas também a todos os consumidores de seguros. Outro tema de grande repercussão, envolvendo, aqui, o seguro de responsabilidade civil, é a possibilidade de a vítima ajuizar ação direta em face da seguradora. Está previsto o julgamento pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça de seis recursos sobre o assunto, admitidos como representativos de controvérsia repetitiva. Um dos recursos trata da possibilidade de a vítima de sinistro ajuizar ação indenizatória diretamente contra a seguradora do pretenso causador do dano, ainda que não tenha feito parte do contrato de seguro (Resp 962.230). Em outro recurso, o STJ vai discutir a tese da possibilidade de condenação solidária de seguradora que foi litisdenunciada pelo segurado, causador de danos a terceiro, em ação de indenização por este ajuizada (Resp 925.130). Mais uma vez o que se tem é a afronta direta a um dispositivo do Código Civil, no presente caso, o artigo 787, que diz que o segurador garante a reparação das perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro. Ou seja, não há relação jurídica entre a seguradora e o terceiro, mas tão somente entre a seguradora e seu segurado. Em decisão bastante recente, de 15 de março de 2011, a 4ª Turma do STJ decidiu caso pontual acerca da penhorabilidade de valores oriundos de contrato de previdência privada complementar. Restou decidido que o “saldo de depósito em PGBL (Plano Gerador de Benefício Livre) não ostenta nítido caráter alimentar, constituindo aplicação financeira de longo prazo, de relevante natureza de poupança previdenciária, porém susceptível de penhora”. Nota-se um aparente o conflito dessa decisão com o disposto no artigo 649 do Código de Processo Civil, que trata dos bens absolutamente impenhoráveis. Fugindo da polêmica quanto à justiça ou não da decisão neste caso concreto, pois se trata de episódio envolvendo um ex-diretor do Banco Santos, o que causa, mais uma vez, espécie neste tipo de decisão é a sua superficialidade do ponto de vista técnico. As decisões sobre temas tecnicamente complexos deveriam ser precedidas de estudo específico e mais aprofundado dos institutos envolvidos, o que nitidamente não ocorre. No que tange às reservas de previdência privada, as decisões poderiam diferenciá-las, por exemplo, de acordo com o período em que se encontram, se de acumulação ou de auferição de renda; ou, ainda, de acordo com a regime tributário escolhido, se progressivo, indicaria o intuito de aplicação financeira, e se regressivo, indicaria que a pessoa deseja efetivamente utilizar aquele fundo de reserva para a constituição de renda futura. Todos esses pontos são apenas esboços de questões que precisam ser refletidas com maior profundidade. Existem, ainda, diversas outras decisões judiciais de grande relevo para o mercado de seguros que merecem ser lembradas, como as relativas à prescrição e ao suicídio, mas que, em função de sua maior complexidade e polêmica, não foram abordadas aqui pontualmente. Mas o que está acontecendo hoje, não é nenhuma novidade do ponto de vista histórico. Não é a primeira vez em que nos vemos diante da hipertrofia de uma das três manifestações do Poder Estatal. Já passamos pela chamada “Era do Legislativo”, quando da institucionalização do Estado Liberal, pós-Revolução Francesa, caracterizado pela definição precisa entre o público e privado, garantida pela atuação do Estado que, lançando mão do “império das leis”, garantia a certeza das relações sociais por meio do exercício estrito da legalidade. A este período estão atrelados os direitos fundamentais de primeira geração, ligados à ideia de liberdade. Já passamos, também, pela “Era do Executivo”, quando da inauguração do movimento do Estado Social, já no século XX, configurado pela defesa do intervencionismo estatal efetivo no campo econômico e social, das prestações positivas do Estado na aplicação da igualdade material e na realização da justiça social. A este período estão atrelados os direitos fundamentais de segunda geração, ligados à ideia de igualdade. Hoje, estamos vivendo efetivamente a “Era do Judiciário”, à qual é possível associar os chamados direitos fundamentais de terceira geração, que são direitos coletivos, de solidariedade e fraternidade, direitos concernentes ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à defesa do consumidor, da criança, do idoso. Podemos trazer ao nosso tempo, ainda, os vanguardistas direitos de quarta geração, relacionados aos novos direitos sociais decorrentes da evolução da sociedade e da globalização. E é exatamente no afã de concretizar esses direitos, que se tem um Poder Judiciário tão atuante ao ponto de invadir o espaço de outros poderes. E nesse mundo moderno em que vivemos, que sofre transformações tão rápidas nos mais diversos pontos de vista, social, econômico, tecnológico, o Poder Executivo e, mais ainda, o Legislativo tem se mostrado completamente obsoletos em acompanhar tais mudanças. E é exatamente nessa incapacidade dos outros poderes que o Judiciário começou o seu processo de crescimento, de hipertrofia. É inegável que, em muitos aspectos, a atuação alargada do Poder Judiciário representou avanços à sociedade, com a definição de questões há muito debatidas nos outros dois Poderes, sem que se tivesse chegado a uma solução efetiva. Todavia, o movimento que se iniciou da inércia dos outros Poderes, hoje se transformou em um problema de conflito real entre as diferentes esferas de manifestação do Poder do Estado. É claro que o Judiciário não pode se furtar a decidir sob a alegação de lacuna legal, mas o que se critica não é isso. Estamos diante de decisões judiciais que se sobrepõe a normas legais vigentes e em consonância com a realidade fática, não havendo, pois, motivo legítimo a ensejar o seu afastamento. Em sendo o Poder Estatal uno, não é possível conviver com manifestações diferentes e conflitantes por ele emanadas! Desse movimento de hipertrofia judicial surgem muitas preocupações: estaria sendo benéfica ao país e à sociedade a atuação extensiva do Poder Judiciário? A médio e longo prazos, quais serão os reflexos desse tipo de decisão para a economia do país? O mercado consumidor está preparado para o potencial aumento de custos de alguns produtos e serviços causado por decisões judiciais? Sem respostas satisfatórias, retomo a ideia de Montesquieu, de que a separação dos Poderes se prestaria a proteger os “súditos” de normas decorrentes dos caprichos arbitrários de um “soberano”. Se analisarmos com intrepidez o que se passa hoje, concluiremos que vivemos quase um retorno ao século XVIII: no lugar das normas promulgadas após extenso e completo processo legislativo democrático, nos estão sendo impostas novas “normas”, fruto do arbítrio de um ou de poucos magistrados, o que nos abandona no enorme vácuo da lacuna democrática.