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Uma porção do Brasil torce pelo fracasso de João Gilberto

A crônica dos ingressos “encalhados” da turnê 80 Anos, Uma Vida Bossa Nova,
de João Gilberto, revela uma estranha incompatibilidade do maior
artista popular brasileiro com seu País. Bem explicado, com uma porção
cavalgadura do Brasil. Sabe-se que, por conta de uma gripe e de
transtornos na produção, seus espetáculos foram adiados até o
cancelamento final.
Como comprovam pencas de reportagens e comentários nas redes sociais,
João Gilberto precisava fracassar. O confinamento, o desprezo à ordem
das celebridades, a essencialização de uma arte e o radical sacerdócio,
em mais de 50 anos de carreira, tornaram-no um inimigo da
previsibilidade do show business e dos fervores justiceiros do
jornalismo. João Gilberto precisa fracassar para que prevaleça alguma
lógica, por vezes chamada de “respeito ao público”. O que não parece
faltar em suas criações rítmicas.
Em setembro, dois dias depois do início da vendagem dos ingressos da
turnê (iam de R$ 500 a R$1.400), em quatro capitais brasileiras,
trovejaram as primeiras reportagens sobre o “encalhe” e a “frustração”
dos produtores.
Não se conhece, na imprensa brasileira, semelhante preocupação com o
desempenho da bilheteria de qualquer outro artista popular vivo. E o
fluxo de suspeitas sobre a viabilidade dos shows não cessou, seguindo a
antiga tendência de folclorização, agora verificada no escárnio à sua
gripe; meses antes, na torcida por seu despejo de um apartamento no
Leblon, onde se negava a receber os operários de Madame Proprietária.
Nem Roberto Carlos, hen-hen-hen, resistiria a tamanha urucubaca.
O próprio ato de falar de João Gilberto, sem apelar para o folclore,
virou uma ofensa a certa nacionalidade ferida por sua recusa minimalista
ao convencional. Acredita-se que, além de uma forma nova de tocar
violão, ele inventou a excentricidade. O irascível Frank Sinatra, a quem
se permitia ficar gripado, ao menos literariamente, não era dos mais
dispostos a afagar a vizinhança, salvo algumas companhias mafiosas.
Fosse brasileiro, mereceria uma permanente avacalhação.
No lançamento do seu último disco, Chico Buarque ridicularizou a
contento o ódio dos comentários anônimos na internet. Algumas mensagens
ofensivas a João Gilberto, não deixam de
impressionar pelo tom dos relinchos:
1. “Não sei porque idolatram tanto esse cidadão, uma voz irritante,
cheio de chiliques, se acha o ser supremo da MPB e nem é, realmente
lamentável que esse pais de ignorantes ainda pague rios de dinheiro para
alguém desse tipo, para mim ele nunca contribuiu em nada nessa vida,
não faz a menor falta para ninguém, e agora mais um titulo para ele:
CALOTEIRO. Não paga aluguel e não quer deixar o imóvel, um lixo esse
homem”.
2. “Esse João Gilberto é o maior enganador que eu já vi na vida… não
canta nada, não toca nada, é um chato de galocha e ainda fica todo mundo
endeusando ele… Ahhh…vai te catar!”.
3. “Galera, não sei pq acham esse cara um artista… Sério, sempre que o
vejo cantar me dá vontade de arrancar o violão da mão dele e
arrebentá-lo na cabeça”.
4. “Quem disse para o João Gilberto que ele canta e compõe? Acho que ele paga para ser gravado e visto”.
5. “A bossa nova foi criada para aqueles que não sabiam cantar. Enchem muito a bola desse individuo que se acha um Deus.”
Afinal, que mal João Gilberto faz ao Brasil?
Somente em 2011, recebeu propostas de shows em oito países, da Rússia à
Argentina. Chato. Na última turnê brasileira, o guitarrista inglês Eric
Clapton revelou que sonhava em tocar com… João Gilberto. “Ele é
fantástico. Mas também sei o quanto é difícil de ser encontrado”,
tietou. Que chato. Dúzias de artistas internacionais, como Frank
Sinatra, já pediram para encontrá-lo. Ciceroneados no Brasil pelo
romancista Jorge Amado, em 1960, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
não tiveram a sorte de ouvi-lo na primeira encarnação. João não foi. E
não deve ter havido outra chance, pois o casal não dava pelota para a
vida póstuma.
Madonna, que costuma cobrar ingressos baratos, transmitiu o recado de
que desejaria cantar “Garota de Ipanema” acompanhada do violão daquele
brasileiro chato. Ela ficou vidrada em um disco: “João”. Em 1994, no Rio
de Janeiro, o cantor norte-americano Tony Bennett, certamente
desavisado do refinamento da hidrofobia anti-João Gilberto, confessou:
“Adoraria que ele participasse do meu show”. “O comportamento intimista
de João Gilberto foi fundamental para a divulgação da Bossa Nova no
mundo”, acrescentou Bennett.
Em 2008, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, um público de 2.800 pessoas o
aplaudiu de pé, antes do início do show e de ouvir sequer um “boa
noite”. Bem chato. Em 2004, João Gilberto não parou de reclamar das
falhas técnicas do som desse mesmo templo da música americana, onde
houve o histórico concerto da Bossa Nova, quatro décadas antes.
“Somebody come for help!”, implorava o cantor. Milhares de chatos
aplaudiram o profissionalismo do chato-rei. Onde eles estavam com a
peruca?
Falando na lendária sessão bossanovista de 1962, no Carnegie Hall, um
trecho de “Chega de Saudade”, de Ruy Castro, demonstra o quanto o baiano
de Juazeiro chateava alguns dos maiores talentos do jazz: “O
encerramento em grande estilo estaria a cargo – que dúvida! – de João
Gilberto. Afinal, era para ouvi-lo que estavam na plateia nomes ilustres
como Tony Bennett, Peggy Lee, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Gerry
Mulligan, Erroll Garner e Herbie Mann”.
Ainda hoje, fora do Brasil, os Estados Unidos são a maior fonte de
rendimento dos direitos autorais de João Gilberto. Em todo o planeta,
dos elevadores aos restaurantes, da trilha do filme “Prenda-me Se For
Capaz” (de Steven Spielberg) à da série “Sex and the City”, suas canções
são ouvidas por quem possui sensibilidade e alguma medida de poesia.
Produtor musical do álbum “João, voz e violão”, Caetano Veloso – e
muitos de seus pares – o estima como “o maior artista da música popular
brasileira de todos os tempos”. Para matar você aí de raiva, ou de amor,
Miles Davis definiu: “Ele pode até ler jornal que soa bem.”
Estranhamente, esse gênio celebrado por bípedes do mundo inteiro não
frequenta as listas dos músicos mais tocados nas rádios brasileiras. O
mundo deve estar errado – e o Brasil, certíssimo. Os espectadores do
Credicard Hall, em São Paulo, que o vaiaram em 1999 pelas mesmas queixas
técnicas, devem achar o Carnegie Hall um reduto de implicantes.
Por mais que seja atraente falar do “suicídio” do gato de João Gilberto
(e não se deve perder o humor), não faltam perspectivas menos
folclóricas para abordar a sua obra. Esta semana, depois de uma refrega
judicial de 14 anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu, por
maioria, o pedido de indenização de João Gilberto contra a gravadora
britânica EMI, reconhecendo os danos morais provocados pelos erros na
remasterização de seus discos.
Os álbuns clássicos “Chega de Saudade” (1959), “O Amor, o Sorriso e a
Flor” (1960) e “João Gilberto” (1961) continuam fora do mercado
fonográfico. Alguém aí falou em “respeito ao público”? Em 1992, à
revelia do autor, a EMI reuniu os três bolachões e o EP “Orfeu da
Conceição” num único CD, “O Mito”. Apesar de sua relevância para a
música brasileira, o julgamento do STJ ganhou uma repercussão discreta. A
briga ainda deve durar, mas já percorreu boa parte do percurso
jurídico.
João Gilberto nunca deixou de traduzir o Brasil, de modernizá-lo em suas
recriações musicais, solitariamente entregue a um projeto irrealizado
de País. Que não abra a porta, é outra história. Maravilhosa história.

Fonte: Terra

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