Setor de seguros deve ter importante mudança com Sandbox
Perder a mala no aeroporto e acionar o seguro pode significar ter que lidar com um processo longo e burocrático para receber a indenização, conta o Valor Econômico. Mas, e se com um clique o cliente pudesse comunicar o sinistro e em minutos receber o valor em sua carteira digital, sem ter de se importar se é fim de semana ou qual o horário ocorreu o incidente? Pois esse é um dos cenários prometidos pela nova geração de seguradoras digitais, as “insurtechs”, que foram selecionadas para o programa de impulso à inovação – o chamado “sandbox” – promovido pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).
As mudanças que estão por vir não param por aí. Além de receber as indenizações em questão de horas ou até minutos, diversos produtos prometem usar inteligência artificial e análise de dados maciços para validar os sinistros às vezes em tempo real. Muitos seguros serão contratados sob demanda, “como um Netflix de coberturas”, afirma o fundador e CEO da 88i, Rodrigo Ventura, uma das 11 empresas selecionadas para o sandbox da Susep.
Na esfera regulatória, o termo sandbox – que em tradução literal significa “caixa de areia” – diz respeito a um conjunto de normas mais simples e flexíveis, geralmente com um nível de supervisão menor dos reguladores. O objetivo é permitir que novas empresas testem tecnologias diferentes, sem sufocar a inovação.
No Brasil, ele vem sendo introduzido a partir de um projeto do Ministério da Economia que engloba as diferentes autarquias do mercado: Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Susep, a primeira a implementar o projeto. As empresas do sandbox ganham agilidade na criação de novos produtos e coberturas As inovações à vista prometem impactar o setor de seguros como um todo.
Se depender das empresas selecionadas, o objetivo é mudar tudo, desde a relação que o brasileiro tem hoje com os seguros até os serviços oferecidos nas apólices. A expectativa é que os produtos serão mais inclusivos, com preços acessíveis a toda população. Isso sem contar a possibilidade de se proteger contra riscos hoje ainda não cobertos pelas apólices tradicionais, como pandemias e deslocamentos multimodais.
Nessa primeira etapa, a atuação das selecionadas no sandbox está limitada a determinados ramos. Os seguros a serem oferecidos nesta primeira turma incluem tablets, smartphones e dispositivos portáteis. E também automóveis, animais domésticos, acidentes pessoais, funeral, residência e estabelecimentos comerciais. E haverá, ainda, oferta de seguros intermitentes, utilizados sob demanda, bem como seguros paramétricos para desastres, de acordo com alertas das autoridades públicas de cada Estado.
A transparência também foi um fator fundamental na seleção da Susep, que analisou 14 projetos. As informações serão disponibilizadas nos aplicativos, que enviarão avisos proativamente para alertar sobre riscos, orientar ou aconselhar o beneficiário sobre hábitos e muitas outras facilidades.
“O sandbox tem efeitos diretos e indiretos sobre todo o mercado. Se qualquer uma das seguradoras der muito certo, irá exercer pressão para melhorar a experiência do segurado. Isso gera ganhos de eficiência e transparência”, afirma o diretor da Susep, Rafael Scherre.
Já há startups que atuam no mercado segurador mas, ao contrário das fintechs, não chegaram com força na ponta da distribuição. Em geral, as insurtechs ofereciam, até o momento, serviços para as seguradoras. “Como no caso das fintechs, que trouxeram inclusão no crédito, nossa meta é fazer isso com a proteção do patrimônio”, diz André Gregori, sócio-fundador e presidente da ThinkSeg.
As seguradoras tradicionais possuem uma grande complexidade em seus processos e negócios, inclusive no desenvolvimento de novos produtos, compara Wladimir Chinchio, que preside a Emotion, outra selecionada pela Susep. “O segurado busca conveniência, o que poderia ser oferecido por um aplicativo ou site. Mas hoje isso ainda é muito difícil por causa desse ambiente. Temos essa oportunidade”, afirmou. A Emotion vai oferecer seguro de vida por morte acidental, área em que o executivo enxerga espaço para aumentar a cobertura e facilitar a contratação dos produtos.
No sandbox, a maioria dos projetos visa ser 100% digital, com contratação, cancelamentos e vistorias remotas, por meio de um site ou de um aplicativo, sem precisar do corretor de seguros. Atualmente não há regra que impeça a compra de um seguro sem a intermediação, mas o modelo nunca ocorreu de fato.
“O mercado talvez tenha se acostumado com um determinado modelo de distribuição por meio dos corretores”, afirma o diretor da Susep, Eduardo Fraga. O corretor continuará sendo um agente relevante do mercado, atuando na parte consultiva, comparou o cofundador e presidente da Flix, outra startup selecionada, Felipe Barranco. “A contratação direta, sem intermediários, faz com que tenha uma diminuição importante dentro da precificação dos produtos, que é um objetivos da Susep”, diz.
Para Barranco, a atuação do profissional tende a se equiparar à dos consultores de investimentos, visão compartilhada por Gregori, da Thinkseg. “Na bolsa, as pessoas querem assessoria, mas não querem alguém que execute a ordem, ela quer ouvir o conselho, mas quer apertar o botão. Acho que talvez essa seja uma mudança fundamental na prestação de serviços financeiros, que os corretores terão de descobrir”, afirma.
Um outro ponto é que as empresas do sandbox, por possuir uma regulação específica, ganham agilidade na criação de novos produtos e coberturas. Ao longo do processo, a Susep irá acompanhar a evolução dos trabalhos, e o regulador poderá flexibilizar normas ou alterar regras e abrir mais áreas de atuação ou até mesmo novos editais.
O regulador avaliará a possibilidade de estender as regras mais simples para todo o mercado. E mesmo antes das empresas começarem a atuar – cada uma delas precisa de autorização da autarquia -, a Susep já identificou pontos de mudanças na norma de seguros a partir de projetos selecionados. Um exemplo são os seguros que irão funcionar como um programa de assinatura, com créditos que serão consumidos conforme o uso do seguro. Esse modelo, trazido em mais de um projeto do sandbox, apontou a necessidade de a Susep rever a regra de provisionamento de seguradoras. “Isso muda a forma como se constituem os passivos. As regras tradicionais não estão capturando esse detalhe”, diz Fraga.
A Susep também considerou na seleção dos projetos a atuação em nichos com penetração muito baixa. De Uberlândia (MG), a Split Risk, por exemplo, vai atuar no segmento de automóveis, mas com foco em pessoas que não estão seguradas e apólices flexíveis. É o caso de motoristas de aplicativos que alugam os carros ou os automóveis mais antigos. “O foco é tirar o cliente do risco total”, diz um dos fundadores, Pedro Henrique Pires.
Outra integrante da primeira turma do sandbox, a 88i, vê espaço para o surgimento de produtos multifacetados, como um seguro para mobilidade. A proteção se ajustaria de maneira automática de acordo com o modal utilizado, seja carro, bicicleta ou patinete, segundo Ventura. Atualmente, a 88i tem foco em empresas e planeja evoluir para venda direta ao consumidor final. As proteções vão desde logística de carga e transporte de pessoas a assistência saúde, seguro de celular e de perda de bagagem.
O processo do Sandbox tem prazo de três anos. Nesse meio tempo, várias possibilidades estão em jogo. As empresas podem desistir, vender suas operações ou mesmo verificar que o negócio não é viável. “Há vários desafios ao saírem do ambiente de sandbox, que tem uma regulamentação específica e adequada para uma empresa entrante”, diz o diretor da Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg), Alexandre Leal.
Além do sandbox, a Susep criou uma regra de segmentação, que classifica a companhia de seguros de acordo com o porte e perfil de risco de cada uma. Em tese, uma startup que tenha sucesso em todo o processo poderia sair do sandbox e ingressar no mercado como uma seguradora estabelecida em um dos níveis iniciantes. Ao mesmo tempo, o sandbox representa para as empresas selecionadas uma vitrine privilegiada para receber investidores, disse a fundadora e presidente da Komus, Stephanie Peart.
“O aval do regulador é muito importante. Temos investidores-anjo e estamos em contato com fundos de investimento”, afirmou. O projeto da “caixa de areia” oferece à empresa uma estratégia de longo prazo para se tornar uma seguradora estabelecida no mercado. A empresa, que é voltada para seguros de celular vai retornar ao cliente uma mensalidade se o seguro não for acionado, o chamado “cashback”, possibilidade que também está presente em outros projetos.
A seguradora Pier foi a primeira a receber autorização do regulador para iniciar as operações dentro do modelo. “Com o sandbox, devemos acelerar as coberturas nos dois produtos”, disse o fundador e presidente da empresa, Igor Mascarenhas, referindo-se aos seguros de celulares e automóveis que hoje a Pier oferece. Na seguradora, 60% dos sinistros tem pré-autorização usando tecnologia e inteligência artificial, segundo Mascarenhas.
Seguradoras já estabelecidas no mercado poderiam participar do projeto da Susep, desde que criassem uma nova empresa com um CNPJ separado. Este foi o caso da MAG (ex-Mongeral Aegon), que criou a Simple2u, uma das escolhidas pela Susep. “O sandbox vai propiciar para o grupo uma experiência completamente nova, e iniciar em outros ramos que não o de seguro de vida”, disse o diretor da Simple2u Leonardo Lourenço.
A MAG é voltada para seguros de vida, e a Simple2u vai começar no sandbox com acidentes pessoais e proteção de patrimônio, que serão intermitentes. Ou seja, poderão ser acionados de acordo com a necessidade do cliente em dias ou horários pré-estabelecidos ou por geolocalização. Isso garante produtos bem mais baratos segundo o executivo.
“Estamos falando de uma grande mudança, em lugar de seguro sob demanda para um plano de seguro ‘just in time’, como se fosse um Netflix, onde a pessoa consome a cobertura como se estivesse consumindo um filme”, compara Ventura, da 88i.
O futuro do mercado segurador tende a ser promissor com a ajuda da tecnologia, que caminha para que as soluções sejam ainda mais proativas. Em muitos casos, conseguirão até se antecipar ao cliente.
“Em um futuro próximo, ao identificar um evento de perda de bagagem, um sistema pode verificar qual a identidade da pessoa e, se for um segurado, pagar a indenização e avisar o beneficiário antes mesmo de ele precisar acionar o seguro”, conta Ventura.
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