Saindo da crise: a tentação da inflação
O presidente Nicolas Sarkozy apresentou, na quarta-feira (25), os trabalhos da comissão copresidida pelos ex-premiês Alain Juppé e Michel Rocard: ela deve definir em dois meses as “prioridades estratégicas” do grande “empréstimo nacional” a ser feito em 2010 para financiar investimentos futuros.
Mas essa dívida se somará às precedentes. Nos Estados Unidos, na Europa ou no Japão, as perdas de receitas ligadas à recessão e ao custo dos planos de salvamento bancários e de retomada do crescimento chegarão a trilhões de euros. E isso em um contexto de progressão dos gastos ligados ao envelhecimento das populações. Uma vez alcançada a recuperação, serão a diminuição dos gastos públicos e o aumento dos impostos suportáveis, especialmente para aqueles lastreados por seus empréstimos imobiliários?
Na zona do euro, o Tratado de Maastricht dá como principal missão ao Banco Central Europeu (BCE) zelar pela estabilidade dos preços; e este não gosta de assumir nenhum risco sobre isso
Abandonada nos anos 1980, uma receita poderia então voltar à moda: a inflação. A alta dos preços aumenta a renda das empresas e do Estado – e das pessoas físicas, quando os salários são indexados -, uma vez que o montante das dívidas e os juros permanecem constantes.
Pela inflação, os detentores de dívidas pagariam, por sua vez, sua parte para a crise, depois dos contribuintes, dos assalariados e dos acionistas.
“Não conseguiremos nos livrar de acúmulos de dívidas tão elevadas nos países industrializados sem aceitar mais inflação. O bom senso mandaria que nos preparássemos para uma volta da inflação para amenizar seus efeitos negativos. A alta dos preços seria hoje uma boa notícia levando em conta os riscos de deflação. Seria a forma menos dolorosa de aliviar o fardo da dívida. Ora, os Estados Unidos estão mais preparados para aceitar esse discurso do que os europeus”, explica Véronique Riches-Flores, economista-chefe para a Europa da Société Générale.
Ao financiarem diretamente a dívida do Estado pela emissão monetária, o Federal Reserve (Fed, banco central americano) e o Banco da Inglaterra (BoE) parecem seguir esse caminho. Entre o risco de depressão e de deflação – a volta aos anos 1930 – e o de sofrer, no longo prazo, um crescimento um pouco inflacionista – sobre o modelo dos “trinta anos gloriosos” do pós-guerra -, os Estados Unidos e o Reino Unido parecem ter escolhido o segundo.
Levando em conta a aversão americana pelos impostos, “o consenso político será em favor da expropriação legal que a inflação representa” para aliviar a dívida, prevê Jacques Delpla, membro do Conselho de Análise Econômica (CAE). “Qualquer ponto de inflação não antecipado é um lucro para os devedores, pois reduz o montante da dívida na mesma proporção. Além disso, esta é em parte detida pelos estrangeiros, especialmente os chineses, ao passo que a queda dos gastos e o aumento dos impostos atingiriam 100% dos americanos”, ele acrescenta.
Mas “a inflação provoca efeitos de redistribuição poderosos, entre devedores e credores, e também, como na França, entre aqueles que recebem o salário mínimo – os únicos cujos salários são indexados pelos preços – e a maior parte dos assalariados”, lembra Anton Brender, diretor de estudos econômicos da Dexia Asset Management.
Durante os “trinta gloriosos”, esses efeitos eram corrigidos por medidas de apoio à poupança popular e pela indexação de todos os salários sobre os preços.
O retorno do Estado
Desde os anos 1980, os salários não acompanham mais automaticamente os preços, para evitar uma espiral que enfraquecia a competitividade das economias industrializadas. A concorrência crescente dos países emergentes acentuou essa pressão sobre os salários.
Mas essa pressão poderá se atenuar, em um contexto em que o Estado faz seu retorno à economia. “No mundo que sairá da crise”, avalia Riches-Flores, “a possibilidade de uma volta da inflação não é absurda. As respostas trazidas para a recessão culminarão em um desfiamento da globalização, em seus excessos financeiros e na economia real”.
Assim, acrescenta ela, “o crescimento não será mais puxado pelo consumo, nos países ricos, de produtos fabricados nos países emergentes, mas pelo investimento público – gastos com infraestrutura, com desenvolvimento sustentável – que irá ao encontro do aumento do comércio, da hiperconcorrência e de seus efeitos deflacionistas sobre os salários. Essa política não é protecionista, mas tem os mesmos efeitos, sem barreiras comerciais”, ela garante. Assim, a China se interessa mais pelo seu mercado interno.
Então a volta a um regime de crescimento inflacionista seria concebível a longo prazo. “No século 20, os períodos de forte crescimento que permitiram a aproximação do pleno emprego foram inflacionistas; não por natureza, mas porque eles remetiam a mecanismos mais ou menos formalizados de indexação das rendas, em particular dos salários sobre os preços, e porque eles aliviavam a dívida das pessoas físicas, do Estado e das empresas”, explica Pierre Bezbakh, mestre de conferências na universidade Paris-Dauphine e cronista de Economia no “Le Monde”.
A contrapartida desse crescimento – os rendimentos da poupança investida em empréstimos como o seguro de vida são reduzidos – poderia ser menos bem vista por uma população que envelheceu e poupou para sua aposentadoria.
Mas, temida ou desejada, será que essa alta dos preços realmente está se esboçando? Segundo Riches-Flores, certamente não haverá uma volta da inflação antes de 2011 ou 2012. “Nós estamos em uma situação intermediária onde pressões inflacionistas e deflacionistas coexistem”, acrescenta Bezbakh. É difícil prever quais prevalecerão. A inflação não se decreta para aliviar a dívida, mas podemos não tomar medidas restritivas esperando… que ela vá aliviá-la”.
A Société Générale calculou que aceitar 4% de inflação anual em 15 anos faria recuar, no período, as dívidas pública e privada francesas em 75 pontos do produto interno bruto (PIB) – 120 pontos nos Estados Unidos e 140 pontos no Japão! Mas se a alta dos preços saísse de controle – atingindo dois dígitos – , ela resultaria em uma forte tensão sobre os mercados de ações, o das taxas de juros a longo prazo. Os bancos centrais teriam de agir e voltar a elevar suas taxas agressivamente. Administrar a inflação precisaria, portanto, de muito tato.
O dogmatismo da BCE
Na zona do euro, o Tratado de Maastricht dá como principal missão ao Banco Central Europeu (BCE) zelar pela estabilidade dos preços; e este não gosta de assumir nenhum risco a esse respeito. “Não podemos modificar o tratado sem unanimidade. E existe um consenso político anti-inflacionista na Alemanha. Se quiserem a inflação, ou se deixa a zona do euro, ou os alemães a deixam”, diz Delpla.
O BCE mesmo definiu a estabilidade dos preços como uma alta dos preços inferior a 2%, ou próxima a esse número. Será que ele poderia flexibilizá-la? “É melhor 3% de crescimento e 3% de inflação do que a deflação”, afirma Marc Touati, diretor de estudos econômicos da empresa de gestão financeira Global Equities, para quem, “por dogmatismo”, o BCE não abaixou até agora suficientemente suas taxas básicas de juros.
Depois da queda deste verão, devido aos efeitos tardios do refluxo dos preços do petróleo, a inflação deverá voltar a subir e se estabilizar em 2,3% na zona do euro em 2010, com picos técnicos em torno de 3% em ritmo anual. Se o BCE elevar suas taxas de forma muito rápida e agressiva, o crescimento dos países da zona e sua capacidade de suportar o fardo da dívida diminuiriam na mesma proporção.
Fonte: BOL – Brasil Online