Reencontro no deserto da Índia
Quando desembarcou na Índia, no ano passado, para filmar “Viagem a Darjeeling”, Wes Anderson sabia que a equipe teria de se moldar ao cenário exótico, vibrante e caótico do país – e não o contrário. Pela primeira vez, o diretor de “Três É demais” (1998), “Os Excêntricos Tenenbaums” (2001) e “A Vida Marinha com Steve Zissou” (2004) não tentou controlar a produção nos mínimos detalhes, deixando a locação apontar o caminho por onde a história deveria seguir. “Em vez de lutar contra as adversidades, o que teria me deixado louco, decidi abraçar todas as surpresas, incorporando-as”, disse Anderson, em entrevista ao Valor, em Veneza.
A trama sobre três irmãos americanos que se reencontram a bordo de um trem rumo ao deserto do Rajastão, um ano depois da morte do pai, foi rodada quase no improviso. Muitas das situações de estranheza e de choque cultural, típica de turistas que pisam na Índia pela primeira vez, aconteceram de fato. Como o empurra-empurra no trem lotado, a agitação das feiras ao ar livre e o olhar maravilhado dos atores ao ser recebidos por autênticos moradores numa vila rural no deserto.
“Fiz questão de que o filme refletisse a nossa experiência pela Índia, uma nação onde você nunca se sente sozinho”, afirmou o cineasta.
Como as filmagens pelas ruas sempre atraíam multidões, Anderson não conseguiu planejar meticulosamente cada tomada de “Viagem a Darjeeling” – que estréia nos cinemas do Brasil nesta sexta-feira. “Quando rodava uma cena, sempre acabava surpreendido por pessoas que entravam no quadro, fazendo fundo.” A situação forçou o diretor e toda a equipe de produção a fazerem vista grossa quanto aos erros de continuidade. “Os profissionais locais contratados para decorar o nosso vagão no trem pintavam elefantes por todo o lugar, mesmo depois que as filmagens já estavam em andamento”, lembrou, rindo.
O espírito aventureiro foi refletido em vários outros aspectos da produção. “Viagem a Darjeeling”, que concorreu ao Leão de Ouro no último Festival de Veneza, não disponibilizou trailers ou quartos de hotel aos atores – toda a equipe ficou hospedada na mesma casa na Índia. Também foram dispensadas as tradicionais equipes de figurino ou de maquiagem. Exceção feita à maquiagem de Owen Wilson, cujo personagem exigiu um rosto enfaixado, por ter sofrido um acidente de moto.
Na trama, foi por conta desse acidente que o protagonista decide rever os irmãos (vividos por Jason Schwartzman e Adrien Brody), na esperança de que uma viagem a um país de tradições espirituais consiga reaproximá-los. “Nós mesmos escolhemos os figurinos, o que nos conectou ainda mais aos personagens”, contou Shwartzman, que escreveu o roteiro em parceria com Anderson e Roman Coppola (filho de Francis Ford Coppola).
Por se adaptar às condições na Índia, a equipe gastou muito menos do que o esperado para uma produção hollywoodiana. O orçamento foi de US$ 20 milhões. “Essa estratégia não só nos ajudou a conter as despesas como contribuiu para a unidade do filme, já que nos tornamos uma grande família. Até os rituais espirituais nós fizemos juntos”, contou Anderson, que enfrentou alguns problemas por conta da forte espiritualidade dos indianos.
A seqüência mais desconcertante do longa, em que uma criança é preparada para cremação, após ter se afogado no rio, foi inicialmente rejeitada pelos moradores de vilarejo no Rajastão. “Por temer atrair desgraça, nenhum habitante permitiu que a cena fosse feita em sua casa”, relatou Anderson. Mas os próprios indianos encontraram a solução: “Eles construíram uma casa do dia para a noite, literalmente, para que pudéssemos filmar aquele ritual de despedida antes de queimar o cadáver.”
Apesar de aparentemente cruel, a seqüência é um dos momentos mais belos e ousados do filme, apontado como o melhor trabalho de Anderson até agora. “Minha intenção sempre foi a de trazer uma experiência positiva ao espectador. Não queria chocar, mas, ao mesmo tempo, tinha de causar impacto, para que a cena atingisse seu objetivo dramático”, revelou.
O objetivo a que o cineasta se refere é o verdadeiro reencontro dos irmãos, que desperdiçam a chance de vivenciar a Índia plenamente até se confrontar com a morte da criança. Jack (Schwartzman) continua obcecado pela ex-namorada (Natalie Portman), enquanto Francis (Wilson) não consegue disfarçar seu jeito controlador e Peter (Brody) está confuso e amedrontado com a chegada do primeiro filho. “Quando o filme começa, os personagens não estão abertos ao lugar e muito menos aos irmãos. É preciso que algo aconteça inesperadamente, deixando tudo de cabeça para baixo, para que eles finalmente tirem o foco de si mesmos”, explicou Anderson.
Fonte: Valor
