País precisa de reforma orçamentária, diz ex-presidente do Ipea
A distribuição atual do orçamento público não reflete os anseios prioritários da população, na avaliação do economista Fernando Rezende, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape-FGV). “Discutimos várias reformas nos últimos 20 anos; a tributária, a previdenciária, a trabalhista e até a política. Nunca falamos da orçamentária.”
Ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 1996 e 1998, Rezende é autor de vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior sobre finanças públicas, entre eles “A Reforma Fiscal e a Equidade Social” (FGV, 2011), “A Reforma Fiscal e a Federação” (FGV, 2009), “O Dilema Fiscal: Remendar ou Reformar” (FGV, 2007), e “Finanças Públicas” (Atlas, 1979 e 2001). Seu foco desde 2009 são os temas relacionados à reforma orçamentária, que ele chama de “a reforma esquecida”, federalismo e gestão pública.
No ensaio “A Montanha Mágica” – Uma Breve História da Formação e Deformação do Nosso Orçamento”, Rezende recorre a uma série de analogias e toma emprestado o título do livro de Thomas Mann para defender a tese de que, na medida em que a disputa pela ampliação de direitos garantidos pela Constituição foi crescendo, a divisão dos espaços “ocupados” por despesas no Orçamento se deu de maneira desordenada, refletindo mais a capacidade de pressão e organização política de cada segmento do que as prioridades da sociedade.
Direitos que não tiveram garantias financeiras estabelecidas, mas estão previstos no artigo 6 da Constituição de 1988 – como segurança, transporte e moradia – foram ficando cada vez mais “espremidos”. “Se você olhar as pesquisas de opinião há duas grandes prioridades: saúde e segurança. Ambas foram perdendo o espaço na alocação dos recursos.”
Rezende estima que a soma dos pagamentos de benefícios previdenciários e assistenciais e dos salários do funcionalismo já ocupa cerca de dois terços do Orçamento público. “Se adicionar educação e saúde, já chega a cerca de 80%”, calcula. “Tem uma fila do lado de fora querendo entrar no Orçamento e não consegue”, diz.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que limita à inflação o crescimento dos gastos da União pelos próximos 20 anos, representa uma oportunidade de retomar esse hábito. O processo, no entanto, não será indolor. “A situação é altamente insatisfatória. O nível de insatisfação pode crescer”, diz Rezende, que prevê que o teto não durará por todo o período previsto em lei. “A duração da PEC é algo que não sei quanto tempo será. Certamente 20 anos, não”, prevê. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Em seu livro, o senhor diz que a “montanha” do Orçamento cresceu, mas que os conflitos se expandiram em vez de arrefecer. Poderia explicar essa frase?
Fernando Rezende: Como você não discute a política orçamentária, os direitos pré-assegurados do orçamento público foram se acumulando historicamente. Nas modernas democracias representativas que se estabeleceram a partir do século XIX e cresceram no mundo, em que momento se discutem as opções políticas de como o Estado vai alocar os recursos que extrai dos cidadãos pela via tributária? É a discussão da proposta orçamentária no Legislativo. O orçamento foi criado lá pelo século XV ou XVI na Inglaterra, como uma peça para controlar os excessos do poder monárquico. Quais são as prioridades da população, do país, olhando o longo prazo? Isso não se faz no Brasil.
Valor: Por quê? Quando se perdeu o hábito?
Rezende: A lei orçamentária que está em vigor hoje foi aprovada em março de 1964, cerca de 15 dias antes da implantação do regime militar. Ao longo dos anos, o que foi acontecendo? Pelo fato de que o espaço do Orçamento foi sendo sempre “ocupado” previamente, as grandes decisões que definem como vai ser distribuído o recurso orçamentário acabam não passando pelo período anual de discussão orçamentária. Historicamente, uma das primeiras decisões que estabelecem direitos pré-assegurados sobre o orçamento público foi a criação da chamada pensão vitalícia para filhas solteiras de militares que morreram na guerra do Paraguai. E de lá para cá, isso vem crescendo. Em 1934, foi a primeira Constituição que instituiu a vinculação para educação. A cada momento em que se discutiu reforma constitucional, tais direitos só cresceram.
Valor: Nessa “montanha”, quem foi protegido e quem ficou de fora?
Rezende: A montanha é uma imagem que eu tomei de empréstimo do excelente livro do Thomas Mann para tentar explicar como essa questão está posta hoje. Quem foi ficando de fora? Todos os direitos sociais assegurados no artigo 6 da Constituição que não contam com alguma garantia. Nesse artigo estão educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, assistência. Só que alguns direitos foram objetos de garantias financeiras. Outros são direitos individuais, então esses não precisam nem de vinculação de receita ou de garantia financeira, porque precisam ser pagos por lei. E há os direitos que chamo coletivos, que referem-se à educação e à saúde, porque atendem a uma prioridade nacional. Esses foram os direitos que asseguraram suas garantias ao longo dos anos por vinculação de receita, ou por vinculação de parcela do orçamento público. Na medida em que esses foram crescendo, os outros foram perdendo espaço. Se você olhar os dados hoje em dia, a soma dos pagamentos de benefícios previdenciários e assistenciais mais salários do funcionalismo já ocupa cerca de dois terços do Orçamento. Se adicionar educação e saúde, chega perto de 80%.
“Essa é a imagem do nosso Orçamento. Tem uma fila do lado de fora querendo entrar no Orçamento e não consegue”
Valor: E o que determinou quem entrava e quem saía?
Rezende: É difícil fazer uma afirmação. Acho que foi o fato de que, na imagem da “montanha” que eu estava usando, os ocupantes dos pedaços dessa montanha conseguiram compor não apenas uma forte adesão política, mas uma organização interna. Fortaleceram-se institucionalmente e politicamente. E conseguiram não só resistir à ocupação de outros grupos em pedaços da montanha orçamentária, como expandir o seu lote. Na criação da seguridade social em 1988, por exemplo, a ideia era que o conceito deveria assegurar um espaço específico para o atendimento de direitos sociais. Havia uma imagem antiga de que, na época em que os recursos da Previdência Social registravam superávit, por exemplo, o dinheiro da Previdência era usado para construir a hidrelétrica de Itaipu, ou para construir Brasília. E aí havia uma discussão na Constituinte de que era preciso blindar os recursos da área social de serem usados para outras finalidades. Surgiu, então, a ideia de criar um regime específico de tributação para financiar a seguridade social. O que, na verdade, viria a ser a seguridade social? Seria a universalização do atendimento que o antigo Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) já prestava: dava assistência, saúde e previdência, mas apenas aos trabalhadores com carteira assinada. À medida que discutiu-se a ideia de que o direito de cidadania era que deveria garantir esses benefícios, e não apenas o direito trabalhista, universalizou-se o acesso a todo o cidadão, e ao mesmo tempo gerou essa situação que chamo de uma “jabuticaba” tributária, que só existe no Brasil.
Valor: Que parte é a jabuticaba?
Rezende: Isso de haver dois regimes de tributação. Um, que chamamos de impostos, e o outro, que chamamos de contribuições. Essa distinção semântica, a rigor, não existe, porque são tributos. A ideia era garantir esse espaço no orçamento da seguridade social, que seria distinto do orçamento fiscal. Era uma disposição transitória da Constituição, que dizia: até que seja feita uma lei complementar, a saúde deverá ter 30% das receitas da seguridade. Essa lei complementar nunca foi feita e, hoje, se você olhar os números, a saúde tem, na melhor das hipóteses, 10% das receitas da seguridade. Ou seja: o espaço da saúde foi encolhendo. À medida que os benefícios previdenciários foram ocupando um espaço maior do Orçamento, a saúde foi buscando outras formas de financiamento. A vinculação da seguridade social não é mais a garantia financeira da saúde. Mas esse assunto não é discutido ainda.
Valor: A seguridade social desviou-se da intenção inicial?
Rezende: Não é que tais direitos não estivessem na intenção inicial. É que há uma diferença das naturezas dos direitos. Os direitos previdenciários e os benefícios assistenciais são instituídos por lei: se eles vão crescendo, têm que ser pagos. Como foram crescendo, o espaço da saúde na seguridade foi encolhendo, porque a saúde é um direito coletivo, de outra natureza. O impacto da aprovação PEC dos gastos vai prejudicar os direitos sociais? Eu diria que não.
Valor: Por que não?
Rezende: O impacto principal da PEC do teto dos gastos é provocar uma discussão das escolhas políticas sobre o orçamento público. É ressuscitar a essência do orçamento público de qualidade. Nós ficamos discutindo nos últimos anos o desequilíbrio macroeconômico, se as contas vão dar déficit, se vão dar superávit. Mas se você olhar as pesquisas de opinião que saem hoje, principalmente nos centros urbanos, há duas grandes prioridades: saúde e segurança. Ambas perderam espaço nos recursos.
Valor: A reforma ideal tiraria privilégios previdenciários?
Rezende: Não devemos dizer o que precisa ser feito, mas expor o conflito e provocar a discussão. Ao fim do ano estaremos discutindo o Orçamento de 2018. Se a decisão for financiar o déficit da Previdência, estimado em R$ 150 bilhões quanto vai sobrar para aumentar os gastos em saúde e educação, segurança, transporte? Provoca o debate para que, pelos seus representantes no Congresso, a população discuta o Orçamento.
Valor: Em um país desigual como o Brasil, em que 10% mais ricos concentram metade da renda, não daria para poupar os mais pobres? Não há privilégios intocados?
Rezende: Não me envolvo muito na discussão da reforma previdenciária, não é um assunto que eu tenha me dedicado a estudar.
Valor: E no gasto público social?
Rezende : Eu acho que sim. Há que se discutir essa questão da desigualdade pelo lado do gasto. E isso me leva a um outro tema, que é a questão tributária. Há, às vezes, um debate que me parece não necessariamente equivocado, mas exagerado, de que será possível melhorar a desigualdade pelo lado da tributação.
Valor: Tributando os mais ricos, por exemplo?
Rezende: Vai muito na linha daquele best-seller do [Thomas] Piketty [economista francês, autor de “O Capital no Século XXI”].
Valor: O sr. discorda do Piketty?
Rezende : Discordo das propostas, não necessariamente do diagnóstico.
Valor: O sr. não acha que se deveria tributar as grandes fortunas?
Rezende: É muito difícil garantir que se arrecadará muito tributando grandes fortunas no Brasil. Porque as pessoas têm a possibilidade de distribuir seu patrimônio em escala internacional. Não é por acaso que o governo francês recuou, lá atrás, da ideia de criar uma alíquota adicional quando seu principal artista de cinema [o ator Gerard Depardieu] mudou-se para a Rússia. É muito mais eficiente o Estado promover a redução das disparidades sociais pelo lado da despesa, que é a discussão do gasto. Sim, você vai ter que fazer um sistema tributário progressivo. Mas não dá para achar vai se resolver o problema das disparidades.
Valor: Pelo lado da despesa o debate é onde cortar?
Rezende: Não. Você pode discutir como redistribuir, não necessariamente cortar. Por isso que a nossa ênfase tem sido no processo orçamentário. E começa pela credibilidade das estimativas de receita que, no Brasil, nós perdemos. Sempre se projeta receitas maiores do que as serão necessariamente arrecadadas. E ao longo dos anos, o governo federal adquiriu um vício do qual está difícil de se libertar: o das receitas extraordinárias.
Valor: De quando vem esse hábito de projetar receitas infladas?
Rezende: Não tem como dizer um começo. No período recente há um marco na década de 90, na grande crise de 1998, aquela da Ásia, quando o governo brasileiro teve que fazer, de uma hora para outra, um superávit primário de mais de 3% do PIB. E ali você associou a um programa de privatização muito importante, que gerou receitas extraordinárias suficientes para cobrir o superávit, além do crescimento da carga tributária. De lá para cá, você vem sempre com certa dependência de receitas extraordinárias.
Valor: Voltando à PEC, o sr. disse que não haverá impacto social.
Rezende: Eu não disse que não ia ter impacto. Eu disse que vai abrir a oportunidade para discutir o que ficou escondido.
“A PEC não é prejudicial no médio prazo e poderá trazer o benefício que deve resultar dessa discussão das prioridades”
Valor: O sr. disse que não deve haver impacto nos direitos sociais.
Rezende: Talvez não tenha me expressado com clareza. Em 2017 não terá problema, porque a proposta do Orçamento já acomodou saúde e educação. Agora, quando isso começar a ser implementado, em dois, três anos, essa situação vai se manifestar. O que estou dizendo é que a PEC não é prejudicial no médio prazo e poderá trazer o benefício que deve resultar dessa discussão das prioridades.
Valor: O sr. afirmou que no passado o dinheiro da Previdência ia para infraestrutura. Não há o risco de que isso aconteça com a verba da educação, já que a PEC se sobrepõe à regra da vinculação?
Rezende: A educação já vem perdendo espaço, porque a vinculação da educação para a União é 18% da receita de impostos. Se a receita de impostos caiu; a vinculação da educação também caiu.
Valor: Mas poderia ter caído ainda mais?
Rezende: Sem a vinculação, poderia ter caído muito mais. Não sou contra a vinculação. Sou contra a vinculação permanente.
Valor: Qual a diferença?
Rezende: A diferença é que o mundo muda. Você vincula eternamente e a sociedade está em constante transformação. Se você diz que os municípios e os Estados têm que colocar 25% da receita em educação, o que isso significa no equilíbrio territorial? Onde falta dinheiro? Onde o serviço é prestado? O ensino básico, hoje, é majoritariamente municipal. Boa parte da saúde também é municipal. Tem município no Brasil que, provavelmente, tem muito pouco jovem, que migraram para as áreas urbanas.
Valor: O gestor municipal teria esse discernimento?
Rezende: Não acho. Mas se a não avançarmos numa discussão que abra esse debate, vamos continuar fazendo o diagnóstico errado.
Valor: O que o sr. redesenharia?
Rezende: Eu não quero redesenhar nada. Quero abrir a possibilidade de discutir como avançar nessas reformas. A existência dessas contribuições hoje não traz nenhuma vantagem do ponto de vista dos direitos social, e traz grande desvantagem do ponto de vista tributário e da discussão federativa.
Valor: Como fazer essa discussão?
Rezende: A PEC é uma oportunidade. Alguns gastos não estão limitados pela PEC. Se a lei determina que o benefício da Previdência vai crescer de acordo com o salário mínimo, vai crescer de acordo com o salário mínimo. Não adianta dizer que tem um teto. Eu costumo usar a referência de um samba popular no Rio de Janeiro até os anos 60, o samba da gafieira. O resumo era mais ou menos o seguinte: a música está animada, o salão está lotado, quem está do lado de dentro não sai, e quem está do lado de fora não entra. Essa é a imagem do nosso Orçamento. Tem uma fila do lado de fora querendo entrar no Orçamento e não consegue.
Valor: Com a PEC, à medida que a economia volte a crescer e a arrecadação cresça mais que a inflação, há risco de a fatia da educação no Orçamento encolher?
Rezende: É verdade. Os 18% [da receita líquida da União] vão encolhendo. E já vêm encolhendo. O nível de insatisfação pode crescer. A minha expectativa, que talvez você diga que é infundada, é que isso não será possível sustentar. A duração da PEC é algo que eu não sei quanto tempo será.
Valor: O sr. prevê que a PEC 55 não dure 20 anos?
Rezende: Certamente 20 anos não. Eu não sei qual é a duração. Não há dúvida que, à medida que essas coisas ficarem claras, vai haver uma discussão política. Você está dizendo o seguinte: se isso avançar, poderá chegar um momento, não muito distante, em que a base da vinculação ficará maior do que a correção pela inflação. Sim. Como você lida com isso? Rediscutindo os arranjos. Daí que eu vejo a virtude desta PEC: vamos explicitar a realidade tal qual ela é. Em um primeiro momento haverá repercussões que vão suscitar reações? Provavelmente. Esse é o lado positivo. Enquanto a gente vem escondendo o problema, não acha espaço para discutir o que é importante. O que eu estou querendo defender enfaticamente: é preciso trazer à discussão todos os interesses que estão em jogo. Pelo menos nas últimas duas, três décadas, a PEC é a única coisa que estou vendo de uma tentativa de mudar o paradigma de como as coisas vinham sendo conduzidas até então. Concordo que o momento está um pouco conturbado demais. Mas há coisas concretas que não se interrompem. A população continua querendo que seus direitos sejam atendidos. Todo mundo acha a gestão pública ruim, mas ninguém lembra que o principal instrumento de gestão pública ou privada é o orçamento. O ano de 2018 poderia ser o momento de iniciar o processo de recuperação da importância do Orçamento para a sociedade.
Fonte: Valor