Oferta de clínicas populares cresceu 200% em 12 anos
No momento em que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) discute testar planos de saúde com baixa cobertura, o mercado de clínicas populares e de cartões de desconto que já ofertam consultas e exames, sem internação, cresce em meio ao vácuo regulatório e pode vir a integrar esses eventuais novos produtos.
Essas clínicas têm atraído investimentos de grupos empresariais e se baseiam em uma estratégia de preços acessíveis para consultas, exames e procedimentos médicos. Em geral, são voltadas para a população que financia seu atendimento de saúde sem recorrer aos convênios.
Entre 2010 e 2022, o número de clínicas populares cresceu quatro vezes mais do que a média de outros estabelecimentos de saúde brasileiros —200% contra 50%, segundo dados de um relatório do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) que analisou as relações entre os setores público e privado de saúde.
Os principais usuários dessas clínicas são pessoas que utilizam o SUS. De acordo com a PNS (Pesquisa Nacional de Saúde), entre 2013 e 2019 a população brasileira sem plano de saúde que procurou serviços médicos privados aumentou de 10% para 14%.
Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva revela que 72% dos brasileiros da classe C já pagaram ou conhecem alguém que pagou por consultas e exames particulares porque não conseguiram atendimento no SUS.
Muitas dessas pessoas recorrem aos cartões de desconto, oferecidos por mensalidades de R$ 30, que dão direito a descontos em consultas e exames. Há uma estimativa de mais de 40 milhões de pessoas sejam atendidas hoje por esses produtos não regulamentados.
Para o economista Rudi Rocha, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e diretor de pesquisa do Ieps, é preocupante a falta de regulação do mercado das clínicas populares, em particular pela qualidade do serviço ofertado.
“Muitas vezes esses estabelecimentos oferecem, ao mesmo tempo, consultas e exames. Então, obviamente, existe espaço, em teoria, para conflito de interesses. E a gente não tem capacidade regulatória para coibir e monitorar esse tipo de coisa.”
De acordo com o relatório, nesse cenário podem existir incentivos financeiros desalinhados às necessidades dos pacientes, levando à solicitação de exames e tratamentos desnecessários.
Atualmente, a ANS regula apenas as seguradoras e operadoras de saúde, o que deixa um vácuo regulatório em relação aos prestadores que atendem pacientes que pagam diretamente por serviços médicos.
“Isso precisa ser corrigido para assegurar a proteção dos consumidores e a qualidade do atendimento”, reforça Rocha.
Para Francisco Balestrin, presidente da Fehoesp (Federação dos Hospitais, Clínicas, Laboratórios e Estabelecimentos de Saúde do Estado de São Paulo), apenas o cumprimento de autorizações sanitárias ou de funcionamento garantem um mínimo de segurança aos pacientes.
“O que não quer dizer qualidade assistencial que, de resto, ninguém cobra em nosso país, visto que apenas 5% das instituições têm algum tipo de acreditação.”
Na sua opinião, a regulamentação que a ANS pretende fazer em relação aos planos populares também não garantirá qualidade assistencial.
“A regulamentação é de apenas um produto financeiro e não assistencial. Em nenhuma das opções há garantia pois não são exigidas ações ou critérios de certificação de qualidade. Continua o ‘la garantia soy yo’.”
No último dia 18, a ANS abriu uma consulta pública, que segue até 4 de abril, para avaliar a criação de um tipo de plano de saúde que cubra apenas consultas eletivas e exames, sem direito a internação, atendimento de pronto-socorro e terapias —nesses casos, o usuário vai continuar dependente do SUS. O plano deve ser vendido por menos R$ 100.
A proposta, porém, tem sido vista com preocupação por entidades de defesa do consumidor, Ministério Público Federal e até por servidores da ANS. O temor é que esses planos com cobertura restrita possam precarizar ainda mais o mercado e deixar consumidores desamparados em momentos críticos.
Para Rudi Rocha, a ANS está ultrapassando as suas atribuições, porque a proposta entraria na área de política de saúde e de sistema de saúde. “A atribuição da agência é essencialmente regular e monitorar o setor de planos.”
Na sua opinião, as propostas são muito profundas e é difícil prever o que pode acontecer e quais serão as consequências para todo o setor da saúde.
A ideia é que o novo produto seja avaliado por dois anos em regime experimental. Ao mesmo tempo, conforme a Folha apurou com analistas do mercado suplementar, há um movimento de operadoras de saúde interessadas na compra de clínicas populares já prevendo a entrada desse novo plano.
De acordo com Rudi Rocha, por enquanto não há dados para monitorar esse movimento. “Operações de pequeno porte, que não passam pelo Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica], por exemplo, já estão avançando. Se essa reforma avançar, a gente seguramente vai observar um movimento muito forte e rápido de consolidação”, diz o economista.
A ANS afirma que o objetivo desse novo produto é ampliar e simplificar o acesso dos brasileiros aos planos de saúde, aumentando a oferta e a diversidade na saúde suplementar.
“A proposta é trazer soluções para esse mercado, a partir de estudos a serem desenvolvidos pela área técnica da reguladora e da ampla participação da sociedade e de todos os atores do setor.”
Em nota, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) diz defender a proposta desse tipo de plano, focado na saúde primária e secundária. “Fortalece a prevenção e o diagnóstico precoce de doenças, e pode resolver até 90% das necessidades de saúde ao longo da vida”.
Para a entidade, o novo modelo de saúde deve atender à camada da população que atualmente depende exclusivamente do SUS ou recorre aos cartões de descontos. “O produto de consultas e exames será regulado pela ANS, que fiscalizará os serviços e trará mais segurança às pessoas que contratarem o serviço”.
Clínicas populares têm modelos de negócios diversificado
O relatório do Ieps também fez uma análise detalhada de seis grupos empresariais que operam clínicas populares em São Paulo e revela que, embora compartilhem algumas características comuns, existem diferenças significativas em suas estruturas e seus modelos de negócios.
Alguns grupos se assemelham a hospitais-dia, oferecendo serviços de média complexidade, enquanto outros operam mais como consultórios tradicionais, com um número menor de médicos e menor oferta de serviços diagnósticos.
Parte dos estabelecimentos se localiza em áreas de maior fluxo populacional e renda, como regiões próximas a estações de transporte público em São Paulo. A outra parte está situada em regiões com menor renda per capita e mais distantes da área central da cidade.
De acordo com resultados preliminares da análise, a presença das clínicas populares está associada a uma redução da busca por consultas médicas em unidades do SUS com localização próxima, sugerindo uma possível substituição entre serviços públicos e privados.
Fonte: Folha de São Paulo