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Maria Bethânia: A força que nunca seca

Não se engane pela marola de “Dentro do Mar Tem Rio”, o mais novo disco ao vivo de Maria Bethânia, inspirado nos seus dois últimos álbuns, “Mar de Sophia” e “Pirata” (ambos lançados recentemente pela Biscoito Fino). A cantora baiana, que estréia o espetáculo em São Paulo neste fim de semana, no Citibank Hall, com direção de Bia Lessa, exalta o poder e a beleza dos mares e rios brasileiros, mas em nenhum momento se deixa embriagar pelo morno das águas. “Dentro do Mar Tem Rio” não tem a pretensão de ser um show de protesto, panfletário, mas Bethânia sabe que o país de natureza e cultura exuberantes, cantado por Dorival Caymmi, é também a terra de Luiz Gonzaga, da seca, do coronelato, da péssima distribuição de renda, da corrupção.
Bethânia nunca se envolveu diretamente com nenhum movimento partidário ou comportamental, mas está entre as mais politizadas cantoras brasileiras. Recusou-se a participar do tropicalismo, mas é impossível pensar o movimento sem a sua influência, mesmo que indireta. Ou quem convenceu o “mano” Caetano de que a Jovem Guarda era, sim – ao contrário do que pensava a elitista turma da bossa nova, por exemplo -, um movimento interessante? Da importância de integrar a linguagem do rock ao universo da música popular brasileira?
Divulgação
A cantora nos tempos do “Opinião”, quando marcou presença com a interpretação de “Carcará”, de João do Vale: “Crescemos, eu e meus irmãos, com o sentimento de justiça social muito forte, o que explica a minha garra ao cantar”
É bom que se diga também que Bethânia encarou, aos 18 anos, vindo da provinciana Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, um batismo de fogo: substituir Nara Leão no espetáculo “Opinião”, em plena ditadura militar. Desafio que deixaria qualquer menina interiorana com as pernas bambas, mas que Bethânia, mesmo tímida e franzina, encarou com a força de um “Carcará” (com o perdão do trocadilho). “Meu pai [José Telles Velloso, funcionário dos Correios e Telégrafos, morto em 1983] era um homem de esquerda, muito preocupado com o problema da pobreza, com a distribuição de renda no país. Crescemos, eu e meus irmãos, com o sentimento de justiça social muito forte, o que explica a minha garra ao cantar ´Carcará´, de João do Vale”, conta.
Não é de estranhar, portanto, que Bethânia tenha decidido abrir o primeiro bloco do disco justamente com três canções que abordam o problema da escassez de água no Nordeste: “Asa Branca”, o clássico de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira; “Grão de Mar”, parceria de Chico César (um de seus compositores prediletos) e Márcio Arantes; e “O Nome da Cidade”, de Caetano Veloso. E que tenha escolhido um poema tão forte como “Ultimatum”, de Fernando Pessoa (“O que aí está a apodrecer a vida/ Quando muito, é estrume para o futuro/ O que aí está não pode durar porque não é nada”), para demonstrar seu desapreço com os rumos da política atual. “Eu nunca gostei de apontar pessoas, nomes, não é o meu estilo. Na verdade são todos farinhas do mesmo saco, nivelados por baixo.”
Bethânia é como a amiga Nana Caymmi: fala o que pensa. Na entrevista ao Valor, não poupou nem o velho companheiro de luta Gilberto Gil, atual ministro da Cultura, que anunciou recentemente sua saída no comando do ministério em 2008, por causa de problemas de saúde. “Eu fiquei tão feliz com a notícia da saída do Gil. Eu quero meu amigo de volta aos palcos. Ele faz muito mais falta cantando do que no Ministério da Cultura, que, cá entre nós, é uma piada, foi criado para enganar trouxa”, ataca. Amiga dos amigos, a cantora saiu em defesa de um de seus compositores prediletos, Roberto Carlos, que foi acusado de autoritário e intransigente por parte da classe artística ao vetar na Justiça a comercialização da biografia “Roberto Carlos em Detalhes”, do jornalista Paulo César de Araújo. “Artistas como eu e o Roberto sempre preservarmos a vida pessoal. Para quê? Para um sujeito escrever um livro de fofocas? Ele fez muito bem em vetar o livro, eu faria o mesmo.”
Valor: Foi mais difícil cantar a metáfora social de “Carcará” em plena ditadura militar [há quem diga que a canção de João do Vale foi inspirada no general Castello Branco, tão feio quanto a temida ave de rapina] ou cantar o velho e incurável problema da seca em pleno século XXI?
Maria Bethânia: Não há comparação: é claro que era muito mais difícil, muito mais sofrido, ser artista na ditadura militar. Mas todo mundo tinha gana nessa época, vontade de lutar, não era esse marasmo de hoje. Quando cheguei para o lugar da Nara [Leão], no “Opinião”, que foi um marco político da época, o [Augusto] Boal [diretor do espetáculo] quis saber imediatamente, olhando nos meus olhos, qual era a minha vocação política. Eu tinha só 18 anos, era uma menina do interior, uma caipira. Mas tinha, sim, uma percepção do que estava acontecendo na política do país, por causa do meu pai, que era um homem de esquerda, que acompanhava a vida do país. O sonho dele era ver um trabalhador na Presidência do Brasil. Foi pensando no meu pai que votei no Lula em 1989.
Valor: Seu pai estaria satisfeito com Lula?
Bethânia: Ele não está vivo para dizer.
Valor: Qual é a sua opinião sobre o governo?
Bethânia: Nunca gostei de apontar pessoas, nomes, não é meu estilo. Na verdade, são todos farinhas do mesmo saco, nivelados por baixo, medíocres. Meu descontentamento não é apenas com o Brasil, mas com a humanidade. Se o homem que manda no mundo é um sujeito como o Bush, não é preciso dizer mais nada, não é mesmo? Eu nunca entrei nessa de ficar criticando um político ou defendendo outro, porque eles não me fazem de boba, nunca fizeram.
Valor: O ministro da Cultura, Gilberto Gil, anunciou recentemente que deverá deixar o ministério no próximo ano, para tratar de um pólipo de voz [calosidade nas pregas vocais].
Bethânia: Fiquei feliz com a notícia de sua saída do ministério. Quero meu amigo de volta ao palcos. O Gil que cresceu comigo, meu companheiro, não era aquele que estava lá em Brasília, não. O Ministério da Cultura, cá entre nós, é uma piada, foi criado para enganar trouxa. Tem uma verba mixuruca, que não dá para fazer absolutamente nada. É assim há muito tempo e não vai mudar. Não interessa aos políticos investir em cultura, todo mundo sabe disso.
Valor: Mas na entrevista em que comunicou sua saída do MinC, Gil afirmou que estava satisfeito com seu trabalho no ministério e “que o conceito de cultura vem sendo ampliado nos últimos anos no Brasil (…)”, “que muita gente que não se achava culta, não se sentia parte da cultura, hoje se sente porque é parte da cultura…”
Bethânia: Outro dia o Gil me ligou para avisar que o samba-de-roda da Bahia havia sido proclamado Patrimônio da Humanidade [na categoria de expressões orais e imateriais] pela Unesco. É lindo saber disso, maravilhoso, nada mais justo. Mas, na prática, serve para quê, me diga? Olha, não tenho nada contra o trabalho do Gil no MinC, mas não é preciso ser um especialista em cultura para entender que um ministério que conta com uma verba irrisória, um esmola, é apenas para fazer número e não para levar cultura para os brasileiros.
Valor: O pesquisador e escritor Julio Diniz prepara um livro sobre sua carreira. Podemos esperar grandes revelações?
Bethânia: Eu sou muito tímida para esse tipo de coisa. Odeio dar depoimento em DVD, em documentário [apesar de ser tema de vários filmes, como o recente “Pedrinha de Aruanda”, dirigido por Andrucha Waddington], não suporto ver as pessoas falando sobre mim. Sempre fui muito discreta, sempre soube preservar minha intimidade. Não gosto de ir a programas de entrevistas na televisão, tenho horror a essa cultura de celebridade. E o Julinho Diniz é um velho amigo, uma pessoa da minha mais absoluta confiança, que escreve muito bem [o pesquisador é autor do roteiro para a mostra “Eu não Sou o Meu Nome – Maria Bethânia 35 Anos de Carreira”, exibido em Lisboa, em 2000]. Tenho certeza de que ela fará um ensaio belíssimo sobre minha obra, sem que seja preciso apelar, entrar na minha vida pessoal.
Valor: A senhora acha que o Roberto Carlos acertou ao embargar na Justiça o livro de Paulo César de Araújo, “Roberto Carlos em Detalhes”?
Bethânia: Sim, é um direito dele. Artistas como eu e o Roberto sempre preservarmos a vida pessoal. Para quê? Para um sujeito escrever um livro de fofocas? Ele fez muito bem em vetar o livro, eu faria o mesmo. Por que ele, como jornalista, pesquisador interessado em música brasileira, sentiu a necessidade de entrar na vida pessoal do Roberto?
Valor: Mas há quem argumente que Roberto é um artista, uma figura pública, o cantor mais popular do país e seu veto é um ato autoritário. O escritor Paulo Coelho, por exemplo, em entrevista recente, chegou a dizer que o cantor “estaria colaborando para que comece a se criar um sério precedente: a volta da censura”.
Bethânia: A nossa obra, a nossa música, é publica, a nossa vida pessoal, não.
Valor: O Brasil sempre teve grandes cantoras. Antes da senhora, de Gal Costa, Rita Lee, Elis Regina, Clara Nunes, havia Elizeth Cardoso, Maysa, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Sylvia Telles. Hoje há Adriana Calcanhoto, Marisa Monte, Roberta Sá, Maria Rita, Mariana Aydar, Marina de la Riva. De onde vem essa tradição brasileira de sempre revelar grandes intérpretes mulheres?
Bethânia: Acho que a voz brasileira é feminina. É algo forte, curioso, pois não há o mesmo número de grandes cantores. Eu me considero uma privilegiada por ter seguido o mesmo caminho de grandes cantoras, como Elizeth Cardoso e Dalva de Oliveira. Deus não me deus filhos, mas me deu uma voz feminina, costumo sempre dizer isso.
Valor: E a senhora é generosa com a nova geração de cantoras e compositoras. Já gravou músicas de Ana Carolina, Adriana Calcanhoto, sempre fez questão de abrir um espaço no seu repertório para quem está chegando.
Bethânia: Não é generosidade minha, não. Esse pessoal é mesmo talentoso, eu tenho mais é que aproveitar a matéria-prima, que é farta. E, felizmente, as meninas novas me mandam seus discos, fazem questão de ser ouvidas por mim. Estou igual à Elizeth [Cardoso]: todas me querem. Ainda bem [risos].
“Dentro do Mar Tem Rio” – Hoje, amanhã e domingo no Citibank Hall (al. dos Jamaris, 213, Moema, São Paulo). De R$ 100 a RS 130. (Camarote esgotado.)

Fonte: Valor

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