Legacy voava na rota reservada pela torre para o Boeing da Gol
Bruno Tavares, Marcelo Godoy
O jato Legacy estava na altitude errada quando bateu no Boeing 737-800 da Gol na sexta-feira. Isso porque o piloto do avião disse à polícia que voava a 37 mil pés de altitude. Ele viajava nessa altitude no eixo São José dos Campos-São Paulo-Brasília. O destino era Manaus (AM). O problema é que o jato devia mudar para 36 mil pés ao passar por Brasília. O choque das aeronaves derrubou o Boeing e causou o pior acidente da história do País, com 155 mortos.
A razão pela qual o Legacy não podia estar a 37 mil pés é a organização do espaço aéreo brasileiro. Dependendo do sentido em que trafega o avião, ele deve usar níveis de altitude pares ou ímpares. No caso do jato, vendido pela Embraer para a empresa americana ExcelAire, a viagem até Brasília era feita em uma altitude ímpar (37 mil). Entretanto, ao passar pela capital, essa direção mudou. Assim, a aeronave devia seguir por uma altitude par (36 mil).
Mas o piloto Joseph Lepore e o co-piloto Jean Paul Palladino, que comandavam o Legacy, disseram à polícia de Mato Grosso que tinham autorização da torre de Brasília para efetuar o plano de vôo a 37 mil pés (11 mil metros) de São José dos Campos (SP) até Manaus, onde fariam escala antes de seguir para os Estados Unidos. Os depoimentos foram prestados no domingo, em Cuiabá, ao delegado Anderson Garcia, que trabalha no inquérito sobre o acidente.
O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos da Silva Bueno, afirmou ontem que nenhum dos dois aviões envolvidos no acidente de sexta-feira havia solicitado ou recebido autorização para mudar a altura do vôo. ´Alguém deve ter saído do plano (original) de vôo´, disse o brigadeiro.
Silva confirmou que o plano do avião da Gol previa vôo a 37 mil pés, e o do Legacy, a 36 mil pés. Bueno disse que não sabia em qual altura ocorreu o acidente, tampouco qual avião se desviou do curso. ´Esse é o dado principal da investigação.´ Suspeita-se, na Aeronáutica, que o choque ocorreu a 37 mil pés.
Antes da declaração do comandante da Força Aérea, oficiais da Aeronáutica ouvidos pelo Estado já haviam confirmado que não houve autorização para que o Legacy fizesse toda a viagem a 37 mil pés.
Eles afirmam que é impossível que isso tenha ocorrido, pois seria como autorizar alguém a trafegar na contramão. ´A partir de Brasília, há mudança de proa (a direção do avião)´, disse um deles. A proa do Boeing indicava que ele devia voar em altitudes ímpares e a do Legacy, em pares.
Os oficiais chamaram a atenção para outro fato: de São José dos Campos, de onde partiu o Legacy, para Brasília, a proa é de altitude ímpar. Isso explica o fato de o jato da ExcelAire ter recebido em sua carta de vôo a instrução para trafegar a 37 mil pés no trecho inicial. Mas essa altitude deveria mudar em Brasília. Em outras palavras, era o Legacy, e não o Boeing, que devia alterar a rota. Os dados do plano de vôo devem ser registrados pelo piloto no computador da aeronave, antes da decolagem, para o piloto automático funcionar corretamente.
Segundo os oficiais, o Legacy foi alertado pelos controladores de vôo do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta-1), com sede em Brasília, de que estava na rota errada, mas não respondeu. Enquanto isso, o Boeing da Gol era controlado pelos operadores do Cindacta-4, com sede em Manaus.
No momento da colisão, o Boeing estava a cerca de 200 quilômetros do trecho onde passaria a ser monitorado pelo Cindacta-1. Só a partir desse ponto é que os controladores dos Cindactas se comunicariam para que um entregasse o vôo ao outro. O mesmo ocorria com o Legacy. Ambas as aeronaves estavam na área de interseção dos dois centros, mas não haviam chegado ao momento de troca.
A grande dúvida entre oficiais é saber por que o sistema anticolisão, o TCAS, não funcionou. Os dois aviões tinham esse sistema, que acusa a aproximação de outra aeronave. Ele é acoplado ao transponder, que emite sinais para que os radares controlem a posição de cada avião, identificando-os no espaço aéreo.
À polícia, os pilotos afirmaram que o equipamento anticolisão da aeronave estava ligado e não emitiu nenhum alerta sobre a aproximação do Boeing.
´Os pilotos alegaram que seguiram a rota do plano de vôo e não viram o avião da Gol. Só após pousarem na Base Aérea do Cachimbo é que ficaram sabendo do desaparecimento do Boeing.´
COLABORARAM ISABEL SOBRAL, LEONARDO GOY, EDUARDO NUNOMURA E NELSON FRANCISCO, ESPECIAL PARA O ESTADO
Resgate localiza 100 corpos; caixas-pretas são recuperadas
Equipes de buscas acharam ontem em Peixoto de Azevedo (MT) a cauda do Boeing da Gol, com as duas caixas-pretas e cem corpos mutilados nas proximidades. Os equipamentos já estão em Brasília e serão enviados amanhã para os Estados Unidos, para serem decodificadas por equipes da Boeing. Uma, em bom estado, registra vozes da cabine. Estão gravados os momentos trágicos finais, de 10 ou 15 minutos, do acidente. A outra contém dados do vôo, como velocidade e altitude.
A caixa-preta que contém dados do vôo sofreu avaria e perdeu uma válvula com informações. A leitura dos dados das caixas deve durar 15 dias e a interpretação, com conclusões definitivas, algumas semanas.
Segundo o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos da Silva, os corpos encontrados ontem estavam próximos uns dos outros e a cerca de 1 quilômetro do local onde foi localizado o trem de pouso do avião. O ministro da Defesa, Waldir Pires, evitou fazer previsão sobre o dia em que os corpos começarão a ser resgatados. ´Queremos trazê-los o mais rápido possível.´
Uma comissão montada para investigar as causas do acidente já ouviu o conteúdo das duas caixas-pretas do Legacy. Segundo a diretora da Anac, Denise Abreu, o conteúdo das duas caixas serão confrontados. ´As informações das caixas-pretas do Legacy vão ser cruzadas com as do Boeing para a investigação.´
LAURA DINIZ E VANNILDO MENDES, ENVIADOS ESPECIAIS, LEONARDO GOY E ISABEL SOBRAL, ESPECIAL PARA O ESTADO
Pilotos terão passaportes apreendidos
Decisão da Justiça quer impedir que americanos que comandavam o Legacy deixem o País sem serem ouvidos
Juliano Machado
O juiz Tiago Souza Nogueira de Abreu, da comarca de Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso, determinou ontem a busca e apreensão dos passaportes dos americanos Joseph Lepore e Jean Paul Palladino, respectivamente piloto e co-piloto do jato executivo Legacy 600, que se chocou na sexta-feira com o Boeing 737-800 da Gol na região da Serra do Cachimbo, causando a morte dos 155 ocupantes do avião. Abreu atendeu ao pedido de medida cautelar do promotor de Peixoto de Azevedo, Adriano Roberto Alves.
A decisão da Justiça de Mato Grosso tem o objetivo de impedir que os pilotos deixem o País sem serem ouvidos mais uma vez sobre as circunstâncias do maior acidente aéreo da história brasileira. Segundo o documento, é ´imprescindível a permanência dos representados no território nacional, a fim de que seja verificada a autenticidade das informações por eles prestadas´. Lepore, Palladino e os cinco passageiros do Legacy foram interrogados horas depois da colisão com o Boeing, após pousarem na Base Aérea do Cachimbo.
A Polícia Federal de São José dos Campos recebeu ontem à noite o pedido da Justiça. Os policias descobriram que os dois tripulantes e o vice-presidente da empresa ExelAire, David Himmer, viajaram ontem para o Rio (Leia abaixo). A apreensão dos documentos ficou sobre responsabilidade da PF do Rio. O piloto, co-piloto e vice-presidente não devem retornar a São José, já que a investigação do acidente será conduzida pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). A ExcelAire disse que a equipe vai permanecer no Brasil por tempo indeterminado para ajudar as autoridades brasileiras.
O juiz disse que acatou o pedido da Promotoria porque o andamento do inquérito sobre o acidente seria prejudicado se os americanos retornassem agora a seu país. ´A apuração do caso está em fase inicial e há muitos pontos a serem esclarecidos pelos dois tripulantes. Uma das linhas de investigação aponta justamente para a responsabilidade dos pilotos do jato, o que justifica a permanência deles no Brasil por mais tempo.´
Segundo Abreu, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso já notificou a PF para que cumpra a decisão. Só haverá apreensão se os americanos se recusarem a entregar os passaportes.
Repórter do NYT se diz atônito por ter sobrevivido
Sem nem ter tempo para se recuperar do susto sofrido com o choque entre o jato que viajava e o Boeing da Gol, o repórter do jornal americano The New York Times Joe Sharkey já postava em seu blog. Na página, ele diz estar atônito por ter sobrevivido, mas extremamente preocupado porque os dois pilotos e um executivo da ExcelAire ainda estavam detidos.
O jornalista escreveu que, pouco tempo depois do pouso de emergência, todos os passageiros e tripulantes do Legacy foram detidos e interrogados na base aérea e na polícia por cerca de 36 horas.
No mesmo texto, ele diz que, até o pouso, ninguém sabia o que tinha batido na aeronave. Segundo Sharkey, todos ficaram profundamente abalados pela morte dos 155 passageiros do vôo 1907. Nós agora sabemos que nascemos de novo, escreveu.
Sem transponder, jato Legacy seria um ponto fantasma nas telas de radares
Liège Albuquerque
O identificador eletrônico transponder do jato executivo Legacy, da Embraer, provavelmente estava desligado no momento do choque com o Boeing 737-800, da Gol. Nesse caso, embora o jato não tenha desaparecido dos radares do Cindacta, de Brasília ou de Manaus, passou a não ter mais identificação eletrônica, aparecendo nas telas como se fosse um sinal fantasma. Depois de algum tempo nessa condição, o Comando da Aeronáutica pode enviar caças armados para interceptar o intruso.
´No espaço aéreo da Amazônia são muito comuns os chamados ´alvos falsos´ e, estando com o transponder desligado, ele não seria identificado por qualquer tipo de radar, dos aeroportos ou de outros aviões em vôo na mesma área´, afirmou um técnico ligado à operação do sistema de gerenciamento do Destacamento de Tráfego e Controle Aéreo do Aeroporto Eduardo Gomes (Detecea-EG), o principal terminal do Amazonas.
Segundo a fonte, a caixa-preta do Legacy deve indicar se houve a irregularidade, ´freqüente em aviões executivos ou táxis aéreos, que não cumprem rotas comerciais. Os comandantes de aviões de grandes companhias aéreas, como a Gol, são absolutamente corretos nesses detalhes vitais e mantêm o transponder sempre ligado.´
´O problema é grave, pouco divulgado, e é necessário muito cuidado ao tratar do assunto – mas trata-se de uma situação real: pilotos de aviões particulares ou corporativos adotam esse tipo de procedimento irregular para chegar a altitudes não autorizadas e assim poupar combustível´, disse. ´Com o transponder do Legacy desligado, o controlador teria acesso apenas ao que chamamos de plot, um ponto na tela, um alvo que pode ser falso, que não apresenta códigos de altitude, direção e velocidade que o transponder transmite o tempo todo.´
De acordo com o técnico ouvido pelo Estado, se o Legacy estava sob regime RVSM, um padrão que exige que autorizações das torres para mudança de altitude.
´Se o piloto não recebeu essa autorização, ele pode, sim, ter desligado o transponder para mudar a altitude a seu gosto sem ser identificado pelos radares.´ Ele considera pouco provável que possa ter havido falha de comunicação entre as estações do Cindacta de Manaus e Brasília.
Tripulação de jato é ouvida por comissão da Aeronáutica
Diretora da Anac diz que ainda é cedo para falar em contradições
Isabel Sobral, ESPECIAL PARA O ESTADO, BRASÍLIA
Os pilotos norte-americanos do Legacy 600, Jean Paladino e Joe Lepore, foram ouvidos ontem pela comissão técnica de investigação do Comando da Aeronáutica e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Eles relataram como e em que situação ocorreu a colisão no ar com o Boeing 737-800 da Gol, que caiu na sexta-feira.
O depoimento à comissão de investigação foi prestado no Rio de Janeiro durante toda a tarde. Segundo um dos integrantes da comissão, indicado pela Anac, o gerente geral de Certificação de Aeronaves da agência, Cláudio Passos, ainda é cedo para afirmar se houve alguma contradição entre o que disseram os pilotos e os dados das caixas-pretas do Legacy.
´Não faria sentido conversar com eles antes de verificar os dados dos equipamentos´, afirmou Passos. Ele evitou antecipar detalhes e comentar as declarações supostamente passadas pelos pilotos americanos à Polícia Civil de Mato Grosso, segundo as quais teria havido erro do controle de tráfego aéreo ou do Boeing da Gol. ´A gente tem alguns indícios, mas seria uma leviandade divulgar qualquer coisa antes de cruzar todas as informações´, afirmou.
A diretora da Anac, Denise Abreu, disse que a cautela na divulgação de detalhes da investigação é necessária para não se acusar inocentes.
Além dos pilotos que depuseram ontem, permanece em São José dos Campos, interior de São Paulo, o vice-presidente sênior da ExcelAire, David Rimmer.
Na sede da Embraer, técnicos fazem a leitura da caixa-preta do aparelho, desde anteontem. Um advogado da ExcelAire também estaria a caminho de São José dos Campos para acompanhar os depoimentos dos tripulantes.
A Embraer, por meio de sua Assessoria de Imprensa, não confirma as informações. No entanto, uma representante da ExcelAire informou ontem ao Estado, por telefone, que os três funcionários da companhia ficarão no País por tempo indeterminado ´para auxiliar as autoridades brasileiras´.
A reportagem também entrou em contato com o executivo da Embraer Daniel Robert Bachmann, que estava no Legacy no momento da colisão, mas até as 20 horas ele não havia retornado as ligações. Ele é americano e vive com a família em São José dos Campos.
O relatório preliminar com os dados contidos na caixa-preta deverá ser emitido amanhã. O equipamento armazena dados técnicos da aeronave – como mudanças de rota e possíveis falhas eletrônicas ou mecânicas.
Também grava as conversas mantidas por rádio entre o comandante do avião e os controladores de vôo. A perícia está sendo acompanhada pela Anac.
COLABOROU BRUNO TAVARES
Acidente ocorreu com sol e céu claro
Repórter americano conta que no jato ninguém percebeu o avião da Gol
O pior acidente da história da aviação brasileira aconteceu com sol e céu claro. É o que revelou o repórter americano Joe Sharkey, um dos passageiros do Legacy da companhia ExcelAir que colidiu com o avião da Gol na sexta-feira, em reportagem a ser publicada hoje pelo jornal The New York Times. ´Às 15h59 (16h59, horário de Brasília) da tarde de sexta-feira, tudo que pude ver, tudo que soube, era que parte da asa do jato em que voávamos tinha desaparecido.´
O relato de Sharkey, escrito na primeira pessoa, sustenta que nem passageiros ou tripulantes do Legacy entenderam , ou sequer perceberam, que o jato havia batido em outra aeronave. A viagem, diz Sharkey, seguia tranqüila, até que ele sentiu um tremendo impacto e ouviu o estrondo da batida. ´Então ouvi as três palavra que nunca mais esquecerei: ´Devemos ter batido´, ditas por Henry Yandle´, um dos passageiros sentado próximo aos pilotos do jato.
O céu estava claro e havia sol na hora do choque, o que permitiu que os passageiros vissem que a asa havia sido danificada. ´E assim começavam os piores 30 minutos da minha vida´, conta Sharkey. ´Eu ouviria várias vezes nos dias seguidos que ninguém sobrevive a uma colisão aérea, que tive sorte de estar vivo – e somente depois saberia que 155 pessoas a bordo do Boeing 737 com o qual batemos não estavam (mais vivas).´
Investigadores ainda estão tentando descobrir o que aconteceu, e como, por algum milagre, o pequeno jato conseguiu se manter no ar e aterrissar enquanto um Boeing 737 maior e três vezes mais pesado caiu de bico para o solo.um lugar para pousar. ´Pensei na minha família. Não havia nenhum sinal no meu celular para que eu pudesse telefonar. E na medida em que nossas esperanças iam diminuindo, alguns de nós escreviam recados para suas esposas e amadas e guardavam-nas nas carteiras, com esperança de que fossem encontradas mais tarde.´
Sharkey, que assina a coluna On The Road do New York Times, todas as terças-feiras, estava no vôo para fazer um freelance para uma revista especializada no segmento da aviação.Um pouco antes do estrondo, tinha visto que voavam a 37 mil pés. Apesar de difícil, a aterrissagem foi rápida.
Segundo ele, por volta das 19h30 foram informados que um Boeing com 155 pessoas a bordo tinha desaparecido no mesmo local onde eles bateram. Até ali, conta Sharkey, estavam todos bebendo cerveja e fazendo piadas sobre estarem vivos ou mortos. A partir da notícia da possível queda de um avião com 155 pessoas, todos, mas principalmente os dois pilotos, ficaram abalados. ´Ficou muito claro que o peso daquele acidente iria recair sobre eles para sempre.´
Segundo Sharkey, somente no dia seguinte, quando a base aérea em que eles pousara já estava cheia de autoridades brasileiras investigando o acidente, foi quando souberam da queda do avião da Gol num local de difícil acesso, viram o tamanho do buraco na asa do jato e também tiveram confirmação de que o inexplicável acontecera, dois aviões voando na mesma altitude. ´Como que eu, o passageiro mais próximo do local do impacto, pude não ouvir nenhum som, nenhum barulho do enorme 737?´, questiona-se Sharkey.
Destroços se espalham por área de 30 km
Homens do resgate precisam até espantar animais para vasculhar terreno
Vannildo Mendes
Os quase cem homens que integram as equipes de resgate das vítimas da queda do Boeing 737-800 da Gol estão encontrando dificuldades de toda ordem para os trabalhos de localização e identificação das vítimas. Há corpos espalhados num raio que pode se estender de 20 a 30 quilômetros, pois o avião, aparentemente, começou a se desintegrar alguns minutos antes da queda do seu pedaço principal, com a cabine, partes da asa e do eixo central.
Para preservar o local de impacto o máximo possível, 20 homens, entre os mais treinados do esquadrão Parasar, elite da Aeronáutica especializada em busca e resgate, dormiram ontem na mata, próximo ao local do acidente. Além da árdua tarefa de busca, eles ainda têm de espantar animais – raposas, tatus, felinos, aves de rapina e outros carniceiros da floresta tropical, que atacam ferozmente pedaços de corpos já em estado de decomposição.
As primeiras análises da Aeronáutica levam à suposição de que alguns passageiros, sobretudo os que estavam sem cinto de segurança, podem ter começado a cair logo após o choque com o avião menor, o Legacy. Nesse caso, podem ter caído a 100 e 200 quilômetros por hora, antes do avião se chocar com o solo. Se confirmada essa hipótese, as buscas poderão durar muito mais tempo e nem todos os corpos serão resgatados. ´Faremos o possível para encontrar todos, mas há a possibilidade real de não encontrarmos alguns ou vários´, lamentou o brigadeiro Jorge Kersull Filho, da Aeronáutica, que comanda as operações de buscas.
Alguns membros da equipe de resgate estimam que só poderá ser possível fazer a identificação de no máximo a metade do total de mortos – 149 passageiros e seis tripulantes. Nesse caso, será realizado um enterro simbólico, coletivo, em homenagem às vítimas cujos corpos não foram encontrados.
Anteontem haviam sido localizados pedaços do que podem ter sido um homem e uma mulher, que começaram a ser periciados. Ontem, as equipes de buscas das vítimas do acidente encontraram mais corpos em dois locais diferentes.
Em uma das áreas onde foram localizados restos humanos os peritos não souberam dizer quantos corpos havia, tão deplorável era o estado em que se achavam. ´Eram pedaços de corpos´, disse o legista Aluísio Trindade, do Instituto Médico Legal (IML) de Brasília, que coordena o trabalho de identificação das vítimas. Em outro local, dois corpos foram localizados junto à caixa-preta, e estavam muito mutilados.
ROUPAS
Os dois primeiros corpos resgatados chegam hoje a Brasília. Eles não tinham documentos que os pudessem identificar, mas as roupas e alguns objetos pessoais que portavam podem ajudar a resolver o problema. ´Há muitas dificuldades, mas os recursos técnicos de hoje são grandes´, disse Trindade.
À medida que são resgatados, os corpos estão sendo identificados na Base da Serra do Cachimbo, de onde seguirão em lotes para Brasília, para a identificação definitiva no IML, e entrega dos restos mortais aos familiares. Dez legistas já trabalham na identificação. Por suas características e número de vítimas, o acidente foi o mais devastador da história da aviação brasileira.
A Aeronáutica decidiu esvaziar a área da fazenda Jarinã, próxima ao ponto de queda, onde as equipes de identificação montaram uma estrutura logística para receber os corpos, embalá-los e enviá-los à base aérea da Serra do Cachimbo.
Jorge Kersull Filho informou que o trabalho de resgate está sendo extremamente difícil também devido às condições do ambiente: selva fechada, com árvores entre 30 e 50 metros e muita chuva. ´O cenário é muito mais complicado do que qualquer um de nós poderia imaginar´, disse o brigadeiro.
CAIXÕES
Um avião da Força Aérea Brasileira levou ontem para a região 160 caixões para o transporte dos corpos que forem identificados para Brasília.
O Comando da Aeronáutica divulgou ontem uma nota dando informações sobre a operação militar de resgate. Pela nota, os trabalhos concentram-se na retirada dos corpos, no ressuprimento das equipes que trabalham no local do acidente e na ampliação do perímetro de busca na floresta.
A nota também confirmava que o resgate de vários corpos ocorreu por volta das 15h30. Devem continuar na área 75 militares da Aeronáutica e do Exército, além de sete aeronaves: uma aeronave R-99, cinco helicópteros (um CH-34 Puma e dois H-1H da FAB, um H-60 do Exército e um Esquilo da Polícia do Mato Grosso) e uma aeronave SC-95 Bandeirante.
COLABOROU SÉRGIO GOBETTI
Floresta é a maior inimiga do resgate
Na mata, não há água potável e orientação por GPS é impossível
Eduardo Nunomura, ENVIADO ESPECIAL, PEIXOTO DE AZEVEDO (MT)
Com a experiência de tocar fogo na mata, arrastar trator para abrir picadas e caminhar horas pela selva amazônica, Josimar Ferreira, de 33 anos, e seu colega Silvano Pader, de 24, entraram nos fundos da fazenda Juruna na direção do avião do vôo 1907. Acharam que podiam chegar lá. Praticamente impossível, pelo menos por terra.
Com rios tortuosos ou de difícil navegação e uma mata densa, a floresta amazônica é a maior inimiga para o trabalho das equipes de regaste do vôo 1907. Mesmo se houvesse sobreviventes, eles teriam de cruzar sem orientação uma selva cheia de obstáculos. Não há água potável. Mateiros só matam a sede em casos extremos cortando com facões o conhecido cipó dágua. O problema é que nesta época muitos estão secos.
Caminhar dentro da mata requer senso de orientação que um sobrevivente dificilmente teria. O aparelho de GPS só funciona em clareiras abertas. Segue-se, portanto, sob a orientação do sol. O chão é repleto de folhas secas, que não deixam pegadas claras e escondem buracos. Nem todas as árvores são nobres, mais fáceis de ser identificadas. Há arbustos e árvores de pequeno porte com galhos retorcidos. Os espinhos estão por todo lado. E muitos troncos espalhados completam a flora mais visível. Entre os animais, onças, cobras e porcos-do-mato.
A reportagem do Estado iniciou uma curta caminhada e constatou o óbvio: a floresta é quase intransponível. A mata é sufocante, respira-se mal já nos primeiros metros e a sede é constante. Percorrer um quilômetro leva cerca de uma hora. De uma fazenda vizinha até o local do acidente, não há menos de 25 quilômetros de mata. Esse foi o principal motivo para a Aeronáutica ter optado pelo resgate por helicóptero. Para abrir uma clareira, com 30 homens bem-equipados, levou-se mais de um dia.
Na sexta-feira, Ferreira e Pader viram a aeronave rodopiar duas vezes, balançando violentamente de um lado para o outro e lançando um grande rastro de fumaça branca no ar, até desaparecer floresta adentro. Eles fazem serviços gerais na fazenda Juruna, que fica a cerca de 25 quilômetros, em linha reta, do local do acidente. A base de apoio da Aeronáutica foi montada na fazenda Jarinã, a 40 quilômetros da queda, por ter mais estrutura.
Quando vi (o avião), ele já estava soltando fumaça branca e caindo rápido, disse Ferreira. Ele deu duas piruetas e já estava bem baixo quando varou na mata, acrescentou Pader. Eles foram ouvidos por dois peritos da Aeronáutica, anteontem, interessados em saber qual foi a rota final do vôo 1907.
Na floresta, famílias vêem destroços
Oito parentes de vítimas do acidente do Boeing, que caiu em área do Parque Nacional do Xingu, foram levados pela FAB
Laura Diniz, Vannildo Mendes, ENVIADOS ESPECIAIS
Para oito familiares de vítimas do acidente com o Boeing 737-800 da Gol, a dor pela perda dos parentes se intensificou ainda mais ontem, quando foram levados pela Força Aérea Brasileira até a clareira aberta para ver de perto as dificuldades do resgate dos corpos de seus parentes. ´Eu cheguei a pensar em alguém sentado no banco do avião no topo de uma árvore gigantesca´, disse, visivelmente abalada, a empresária Célia de Sanctis, de uma família tradicional de Sorocaba. ´Vimos que não tem jeito de ter sobreviventes.´
As oito pessoas foram escolhidas pelos outros parentes, reunidos pela Gol em hotéis de Brasília, para representá-los junto às autoridades e obter informações mais precisas sobre o acidente. ´Ouvimos de tudo – desde que não existiam sobreviventes até que havia 15. Cada hora era uma coisa´, contou Célia, que perdeu o cunhado.
Os familiares selecionados pela comissão de parentes das vítimas foram levados de Brasília até a base aérea da Serra do Cachimbo, e depois desceram, às 14h10, na base de apoio da missão de busca e salvamento, na fazenda Jarinã, no município de Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso.
Homens do Para-Sar, após cerca de uma dia e meio de trabalho, haviam conseguido derrubar com motosserras e picar dezenas de árvores para abrir a clareira na área do acidente. O tempo pode ser considerado bastante curto para uma tarefa pesada como essa.
Jorge André, tio de Carlos Cruz, que tinha 25 anos e estava no avião, disse estar convencido de que o avião ´não caiu de bico´ porque viu pedaços do Boeing espalhados pelas copas das árvores bem distantes entre si. Segundo os militares, a área do acidente – onde podem ter caído partes do avião e as vítimas – estende-se por 20 quilômetros quadrados. ´É inacreditável como é difícil (a busca por sobreviventes). Vimos o pessoal vindo da mata, transpirando, emocionados´, afirmou Célia. ´Queria dizer aos familiares que não tem jeito de (a Aeronáutica) fazer mais´, completou.
OFICIAL
O brigadeiro Jorge Kersull Filho, da Aeronáutica, que comanda as operações de buscas dos corpos das vítimas do acidente com o Boeing 737-800 da Gol, informou ontem oficialmente que não há sobreviventes. ´Retardamos essa notícia em respeito às famílias, mas o acidente foi devastador, pior do que qualquer um de nós imaginava´, disse o brigadeiro.
O dia de trabalho dos homens da Força Aérea começou cedo ontem. Por volta das 7 horas, o helicóptero decolou para levar até o local do acidente uma equipe do Para-Sar e trazer de volta à base de apoio outros homens que precisavam se alimentar e descansar. Até às 8 horas, não havia sido encontrado mais nenhum corpo.
Paralelamente às buscas por corpos no local, onde foram encontradas a asa e uma grande parte do avião, os soldados foram ontem em uma nova direção. A Força Aérea fotografou, a cerca de 500 metros desta área principal, uma peça laranja que parece ser a cauda do Boeing.
O primeiro dia útil em Brasília após o acidente foi marcado pelo mal-estar entre parentes das vítimas do vôo 1907 e autoridades do governo. Parte de uma comissão que representa as famílias, hospedadas na capital, reclamaram de falta de respeito da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) por não passar informações aos parentes. No fim da tarde, um grupo conseguiu audiência com o ministro da Defesa, Waldir Pires.
Pela manhã, os familiares divulgaram nota se dizendo ´indignados´ com o fato de a agência ter enviado, no domingo, dois superintendentes para conversar com eles sem preparação para responder às questões, e que teriam até usado de arrogância em certos momentos. Eles contaram que somente depois de muita pressão conseguiram um contato com a diretora da Anac, Denise Aires Abreu.
Num dos trechos mais duros da nota, os familiares acusaram a Anac de tratar o assunto de maneira ´desrespeitosa´, citando uma declaração atribuída à agência: ´Vocês são inteligentes. O avião caiu 11 mil metros de altura, a 400 quilômetros por hora. O que vocês esperavam, corpos?´.
DESCULPAS
Durante a tarde, a diretora da agência passou por todos os hotéis para conversar com os familiares por mais de cinco horas. ´A Anac pediu desculpas por qualquer interpretação errada de que nossas declarações foram desrespeitosas´, explicou Denise Abreu em entrevista, no fim do dia.
A diretora afirmou que não houve arrogância e atribuiu a reação ao choque emocional que as pessoas estão vivendo em razão da tragédia que matou 149 passageiros e seis tripulantes da Gol. ´Infelizmente, em razão do local e do difícil acesso, houve uma demora na prestação de informações aos parentes, mas não era descaso, e sim, falta de agilidade em as autoridades terem os dados precisos para serem repassados´, declarou a diretora.
Segundo a diretora, não há uma determinação legal para que a agência reguladora preste informações às famílias em situações de acidentes aéreos, mas por decisão da diretoria, a Anac se comprometeu a passar diariamente detalhes do processo de resgate por meio de uma funcionária da agência que agora permanecerá em um dos hotéis com os parentes.
´Não havia frieza, mas ao ser a primeira autoridade a revelar que eram mínimas as chances de sobrevivência, a Anac acabou sendo o alvo do legítimo desespero das pessoas´, comentou a diretora.
COLABORARAM: ISABEL SOBRAL, LEONARDO GOY
Indenização pelo acidente vai superar R$ 100 milhões
Mais de 15 empresas estrangeiras participam de rede de cobertura; levantamento deve terminar em 1 mês
Agnaldo Brito
A rede de seguradoras que dão cobertura a Gol Linhas Aéreas quer concluir o levantamento do valor a ser indenizado em 30 dias, informou ontem o Instituto Brasileiro de Resseguros (IRB-Brasil). Uma equipe com representantes das companhias de seguro já foi formada e começou a levantar os prejuízos provocados pelo acidente.
A Sul América Seguros (responsável pela apólice) e a rede de resseguradoras terão de indenizar as famílias dos 155 passageiros mortos no pior acidente aéreo do País. Além disso, vão ressarcir o valor do Boeing 737-800. O total pode superar US$ 50 milhões, ou mais de R$ 100 milhões. Será a maior indenização já paga num caso de acidente aéreo no Brasil, superando o valor pago às famílias de vítimas da queda do Fokker 100 da TAM, em outubro de 1996.
Segundo o Instituto Brasileiro de Resseguros (IRB-Brasil), cerca de 90% do valor virá de mais de 15 companhias estrangeiras, chamadas resseguradoras. Francisco Aldenor, diretor de risco e sinistro do IRB-Brasil, garantiu que neste episódio há cobertura, embora o valor não tenha sido arbitrado. Cada resseguradora participará proporcionalmente ao limite que aceitou cobrir.
No caso da perda de vidas, Aldenor afirmou que a equipe deverá observar a idade da vítima, a remuneração, a expectativa de vida e se o passageiro deixou ou não filhos. ´Se tivermos condições de fazer tudo em um mês, não faremos em dois´, disse.
O IRB-Brasil informou que, enquanto não se define o valor, não há prazo para pagamento de indenizações. Depois de concluído o relatório das seguradoras, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) – órgão que fiscaliza o setor – impõe prazo de 30 dias.
COMUNICADO
A Gol informou ontem que presta assistência às famílias das vítimas do vôo 1907 e reconhece ´sua responsabilidade objetiva quanto às indenizações devidas´. Segundo a empresa, desde sexta-feira, foram disponibilizados transporte, hotéis e atendimento méd
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