IBGE mede o valor do “trabalho invisível”
O IBGE vai calcular o peso dos afazeres domésticos no PIB. Estima-se que equivalem a 10% do total. Dado será usado em políticas públicas. O Brasil entrará na próxima década com informações detalhadas sobre o tempo que as famílias do país dedicam às tarefas domésticas – e qual é o peso disso para a economia. O IBGE planeja lançar, entre 2019 e 2020, a chamada pesquisa de uso do tempo. O levantamento mostrará quantas horas brasileiros gastam para cozinhar, lavar roupa e cuidar das crianças. Além disso, fornecerá os dados para estimar qual é o valor dos serviços que todos fazem em casa, hoje desempenhados principalmente por mulheres e não contabilizados no PIB, o indicador que mede o ritmo da atividade econômica. Para especialistas, as informações do chamado PIB da vassoura serão importantes para orientar a formulação de políticas públicas, ajudar empresas a definir programas de gestão e de recursos humanos, aumentar o debate sobre a desigualdade de gênero e até encontrar formas de aumentar a produtividade da economia.
Não há estatísticas oficiais no país sobre o peso dos afazeres domésticos na economia. No mundo, o cálculo é incentivado por organismos como a ONU Mulheres e a Eurostat (agência de estatísticas da União Europeia) para conhecer melhor a economia e, uma vez que a divisão de tarefas ainda é desigual entre os gêneros, levantar o debate sobre as disparidades. Hoje, o número de horas dedicadas pelas mulheres a afazeres domésticos é 2,5 vezes maior que as gastas por homens. Países como França e EUA já têm pesquisas de uso do tempo, enquanto o México é referência em cálculo do PIB de afazeres domésticos, estimado naquele país em 24,5%.
ESTIMATIVA APONTA PESO DE 10% NO PIB
No Brasil, um estudo da economista Hildete Pereira de Melo, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), estima que, em dez anos, essas atividades geraram o equivalente a um PIB brasileiro, em torno de R$ 5 trilhões ou 10% do PIB a cada ano. O dado mais recente, de 2015, estima que as tarefas domésticas representaram o equivalente a 11,3% do PIB daquele ano. O número não é comparável com outros países, pois não há uma metodologia padrão internacional para a conta.
A estimativa da economista foi feita com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que traz informações sobre o tempo dedicado aos afazeres domésticos desde 2001. O cálculo tem como base o salário do empregado doméstico, levando-se em conta que esse seria o valor gasto, caso a família contratasse o serviço. Ou seja, se a tarefa fosse executada por um trabalhador doméstico.
Embora o PIB seja expresso em dinheiro, nem todas as atividades que compõem o indicador são comercializadas. Na agropecuária, por exemplo, a produção das famílias para consumo próprio entra na conta, mesmo sem ser vendida. Mas, enquanto é fácil medir quanto vale um litro de leite produzido na fazenda – seja ele vendido ou consumido pelo próprio produtor -, é difícil estimar o valor do tempo de cada um. A própria metodologia adotada por Hildete é contestada por alguns pesquisadores: afinal, o tempo de cada um tem um preço baseado no tipo de qualificação. A pesquisadora optou por adotar o valor do serviço doméstico, mas não há consenso em relação a isso. O IBGE é a favor do cálculo: – A gente já faz imputações de renda: se faço uma cadeira e não compro uma, aquilo faz parte da minha renda. Sem ter ideia de quanto as famílias estão trabalhando em casa, não se tem ideia de qual é a importância disso na economia – destaca Roberto Olinto, presidente do instituto, que vê os planos para lançar a pesquisa até 2020 como preliminares.
Ex-diretor de Contas Nacionais do IBGE, o economista Claudio Considera assina ao lado de Hildete o estudo:
– Há mais serviços disponíveis do que os mensurados e eles representam 10% do PIB. Isso não é pouca coisa.
Que o diga a arquiteta Claudia Tavares, de 53 anos. Ela chega a dedicar 24 das 168 horas da semana às tarefas domésticas. O marido, o oficial de justiça Sinclair Albuquerque, de 44 anos, gasta dez horas nessas atividades, segundo um questionário informal proposto pelo GLOBO a três famílias. Pelo método proposto por Hildete Pereira, o PIB da vassoura na casa chega a R$ 9.679,28 em um ano.
– Já tive babá, empregada e faxineira. Financeiramente, não valia muito a pena. Fui mudando meu esquema de vida. Agora, tenho um escritório do lado de casa, em Ipanema. Até os 40, não tinha a experiência de cozinhar e cuidar da casa. Foi uma descoberta – conta Claudia.
Na casa dos noivos Ornella Martins, de 22 anos, e Lucas Lobão, de 27, a ordem é dividir as tarefas:
– Procuramos dividir as tarefas de forma igual. Fazemos o que temos mais afinidade. O Lucas sabe cozinhar, então, isso fica mais nas mãos dele. Cuido mais das roupas – diz a estudante.
O casal Thiago Jatobá e Vinícius Campos, juntos há três anos, tenta dividir ao máximo as tarefas. Mas como Thiago está desempregado atualmente, busca realizar as atividades enquanto Vinícius está no trabalho. Resultado: trabalha 58 horas por semana em casa.
– Buscamos dividir as tarefas de forma justa, mas, como tenho ficado em casa, acabo realizando um pouco mais de atividades – diz Thiago.
EMPRESAS PODEM REVER BENEFÍCIOS
Especialistas alertam que um PIB de trabalho doméstico muito alto pode indicar distorções, principalmente quando a divisão de tarefas é desigual. Por isso, a pesquisa será importante para fazer esse diagnóstico, analisa o economista da Firjan Riley Rodrigues, autor de um estudo sobre as horas gastas no deslocamento entre casa e trabalho – que será investigado mais amplamente na pesquisa do IBGE.
– Se a pesquisa identificar que um grupo tem uma riqueza não computada maior do que aquela já registrada no trabalho tradicional, é possível pensar em formas de investir socialmente, reduzindo essa produção sacrificada em afazeres domésticos para aumentar a produtividade no horário formal – diz Rodrigues.
Para as empresas, as informações sobre o uso do tempo podem ajudar a definir quais benefícios são mais importantes para os funcionários, destaca Nelson Braco, consultor sênior de Capital Humano da Mercer.
– Conhecer demograficamente os anseios da população permitirá que as empresas desenhem planos de benefícios flexíveis, de acordo com o público que quer atingir – avalia.
Patricia Coli, gerente de Capital Humano e Talent da consultoria Oliver Wyman, acrescenta que a pesquisa mostrará dados difíceis de obter com os funcionários:
– Se a empresa sabe onde o empregado gasta tempo fora do trabalho, começa a entender como ajudar. Hoje, a gente tem uma limitação para perguntar coisas da vida pessoal. Quando o IBGE faz a pesquisa, é uma informação pública, com a qual conseguimos fazer propostas.
O debate sobre a desigualdade de gênero move as discussões. Atribuir um valor a um trabalho ainda desempenhado principalmente por mulheres valorizará um trabalho hoje invisível.
– A maior preocupação é com a equidade – afirma Hildete, da UFF.
Para a economista Lucilene Morandi, pesquisadora da UFF, do mesmo núcleo que Hildete, trata-se de uma questão de medir o bem-estar – dimensão que historicamente escapa ao PIB:
– Quando você discute bem-estar social e distribuição de renda, a parte do trabalho não remunerado deveria ser contabilizada, porque faz parte da qualidade de vida das pessoas. Em alguns países, a aposentadoria é calculada em cima do valor do trabalho, de quanto a mulher ganhou de salário médio ao longo da vida. Quando não se mede o trabalho não remunerado, você está lançando a mulher à pobreza, porque ela terá remuneração menor .
Fonte: O Globo