Crise de municípios e Estados afeta educação, afirma Flavio Cunha
O economista Flavio Cunha está pessimista quanto às perspectivas do avanço da educação no Brasil. Além da falta de planejamento de longo prazo, há uma grave crise fiscal nos Estados e municípios, responsáveis por muitas das ações necessárias para que haja progressos de fôlego na área, avalia Cunha, professor da Universidade Rice e pesquisador do Centro de Estudos da População da Universidade da Pensilvânia.
“A crise fiscal nos Estados e municípios é muito mais séria do que a do governo federal. Então, mesmo que tenhamos um plano de ação, não acredito que os Estados e municípios terão recursos para implementar políticas promissoras”, afirma ele.
Cunha destaca que avanços em educação exigem planejamento de longo prazo, mas os incentivos no país têm levado as autoridades a tomar medidas visando resultados num horizonte mais curto. “Desde 1985, apenas três ministros da Educação ficaram no cargo mais do que dois anos: Murílio Hingel [governo Itamar Franco], Paulo Renato de Souza [nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso] e Fernando Haddad [governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff ]”, diz Cunha, autor de vários estudos com James Heckman, Nobel de Economia em 2000, sobre a importância da educação infantil. “Não é um problema da equipe atual. É um problema institucional, pois os incentivos não estão corretos.” Para o país avançar no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), o trabalho deve ser de longo prazo, destaca ele. “Melhorar não no Pisa de 2018, mas no de 2030”, diz ele, para quem isso requer a melhora no desenvolvimento na primeira infância, o que exige mais integração nas áreas de saúde e educação.
“Não se trata apenas de construir creches; trata-se de aumentar a quantidade e melhorar a qualidade das interações entre crianças e os pais. O segundo ponto é melhorar a formação dos professores brasileiros.” No Pisa de 2015, os estudantes brasileiros tiveram mais uma vez um desempenho decepcionante, bem inferior ao da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
E qual será o efeito do projeto que limita o crescimento dos gastos da União sobre a educação? “No curto prazo, o impacto será mínimo”, avalia ele. “Constitucionalmente, o governo tinha que gastar pelo menos 18% da receita em educação. No curto prazo, o crescimento da receita vai ser baixo, pois não teremos crescimento em 2016 e 2017. Portanto, com ou sem PEC do teto, o gasto seria mais ou menos o mesmo.” Para o médio prazo, Cunha diz ser importante “considerar cenários alternativos” para responder a pergunta. “Sem a PEC do teto e sem a reforma da Previdência, teremos déficits crescentes e uma trajetória explosiva da dívida. Nesse cenário, acredito que caminharemos para uma crise inflacionária e baixo crescimento – quem vai investir no meio de uma crise inflacionária? Sem crescimento, a receita do governo não aumenta e, portanto, não tem elevação dos gastos na educação.” Com o projeto que limita os gastos e a reforma da Previdência, a trajetória da dívida tende a deixar de ser explosiva, afirma Cunha. “Teremos inflação sob controle, taxa de juros mais baixas e, portanto, crescimento um pouco mais eleva- do. O quanto gastaremos em educação e saúde vai depender das escolhas orçamentárias feitas pelo Congresso Nacional.” Desde agosto de 2014, Cunha é professor da Universidade Rice, em Houston, no Texas, para onde foi com outros cinco professores da Universidade da Pensilvânia. “Estamos em um processo de construção do novo departamento de economia e já contratamos outros cinco professores.” Cunha tem mestrado pela Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getulio Vargas (FGV) e é PhD pela Universidade de Chicago. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Como o sr. viu o resultado dos estudantes brasileiros no Pisa de 2015?
Flavio Cunha: Não foi surpresa, e eu sempre imagino qual seria o resultado se houvesse um Pisa aos 6 anos de idade. Os pouquíssimos dados que eu conheço sugerem, embora não comprovem, que mais ou menos a mesma diferença aos 15 anos de idade já pode estar presente aos 6 anos de idade.
Valor: O sr. quer dizer que a diferença já estaria presente no desempenho de seis anos de idade, por causa da falta de qualidade e da falta de foco na educação infantil?
Cunha: Existem poucos dados que nos permitam responder esta pergunta com certeza, mas o pouco que existe sugere que sim. Por exemplo, o Chile, com 459 pontos em leitura, foi o melhor país da América do Sul no Pisa, que testa alunos de 15 anos de idade. No mesmo exame, a nota do Brasil foi 407. O TERCE, que é aplicado em apenas alguns países da América Latina, mensura leitura no terceiro e no sexto anos. Os alunos do Chile superaram os alunos brasileiros nos dois anos. Isso sugere que existe um certo paralelismo já a partir do terceiro ano. Antes do terceiro ano, não existem dados comparáveis em leitura ou matemática. No entanto, outros dados correlacionados com desenvolvimento infantil já sugerem paralelismo entre os dois países. Por exemplo, no Chile 6% das crianças nascem pesando menos de 2.500 gramas. No Brasil, essa taxa é de 9%. Aproximadamente 7% dos nascimentos no Chile são prematuros, contra quase 14% no Brasil. A mortalidade infantil no Chile é de 8 em cada mil e no Brasil é de 12 em cada mil. E isso não é só entre Brasil e Chile. Considere, por exemplo, o exame internacional de Matemática TIMMS, do qual o Brasil não participa, aplicado a alunos do quarto e oitavo anos. O ranking de países no oitavo ano é praticamente o mesmo do ranking no quarto ano. O mesmo vale para ciências (PIRLS). Essa evidência, embora imperfeita, sugere que as diferenças começam muito antes do PISA. Para melhorar a formação de capital humano no Brasil, é preciso melhorar a qualidade da saúde e da educação que os brasileiros recebem na primeira infância. Não é suficiente, mas a pesquisa sugere que é provavelmente necessário.
Valor: Quais devem ser as prioridades do Brasil para melhorar a educação e ter um desempenho me- lhor no PISA nos próximos anos?
Cunha: O trabalho deve ser de longo prazo. Melhorar não no Pisa de 2018, mas no de 2030. Para isso, temos que melhorar o desenvolvimento na primeira infância, algo que vai necessitar mais integração nas áreas de saúde e educação. Não se trata apenas de construir creches; trata-se de aumentar a quantidade e melhorar a qualidade das interações entre crianças e os pais. O segundo ponto é melhorar a formação dos professores brasileiros. O primeiro passo para isso é mensurar qualidade dos professores de forma objetiva, não apenas por meio de testes padronizados, mas também pela observação dos professores em sala de aula. Uma vez identificados os melhores professores, devemos testar programas de aperfeiçoamento que mais ou menos repliquem as melhores características desses professores.
Valor: Qual a sua avaliação da PEC do teto de gastos sobre a educação?
Cunha: No curto prazo, o impacto será mínimo. Constitucionalmente, o governo tinha que gastar pelo menos 18% da receita em educação. No curto prazo, o crescimento da receita vai ser baixo, pois não teremos crescimento em 2016 e 2017. Portanto, com ou sem PEC do Teto, o gasto seria mais ou menos o mesmo. No médio prazo, é importante considerar cenários alternativos. Sem a PEC do teto e sem a reforma da Previdência, teremos déficits crescentes e uma trajetória explosiva da dívida. Nesse cenário, acredito que caminharemos para uma crise inflacionária e baixo crescimento – quem vai investir no meio de uma crise inflacionária? Sem crescimento, a receita do governo não aumenta e, portanto, não tem elevação dos gastos na educação. E, com inflação elevada, fica muito mais difícil alocar recursos de maneira eficiente. Com a PEC do teto e a reforma da Previdência, a trajetória da dívida deixa de ser explosiva. Teremos inflação sob controle, taxa de juros mais baixas e, portanto, crescimento um pouco mais elevado. O quanto gastaremos em educação e saúde vai depender das escolhas orçamentárias feitas pelo Congresso Nacional. Se subsidiarem grandes empresários, teremos menos recursos para educação e saúde. Se prevalecer investimento em capital humano, então pode até ser que tenhamos algum crescimento real do gasto em educação e saúde. A questão é se o Congresso será sensível às demandas da opinião pública no Brasil.
Valor: Qual a sua avaliação sobre a proposta de reforma do ensino médio?
Cunha: Há alguns bons pontos, mas não acredito que fará muita diferença. Acho que existe um descompasso que torna a solução do problema difícil. Por um lado, o horizonte da atual equipe no Ministério da Educação é ficar até o fim de 2018, ou seja, basicamente mais dois anos. A pressão é que eles “mostrem serviço” nesse período. Por outro lado, os problemas da educação do Brasil requerem ações de longo prazo. É um trabalho de formiguinha: avaliar iniciativas na área, descobrir o que funciona, ver se pode ser levado para escala e implementado em larga escala. Ao mesmo tempo, muitas dessas ações dependem mais dos Estados e municípios do que do governo federal. Se isso já não fosse um problema gigantesco, os Estados e municípios estão passando por uma grande crise fiscal. Veja o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro, Minas Gerais e, brevemente, outros. Estou muito pessimista quanto ao progresso na área de educação ou de saúde no Brasil.
Valor: Quais são os principais pontos positivos e negativos da reforma do ensino médio?
Cunha: Somente com uma avaliação de impacto da reforma poderemos determinar quais são os pontos positivos e negativos. Será possível explorar o fato de que o ensino integral terá uma expansão gradual para saber o seu impacto em aprendizagem, como mensurado pelo Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], ou quaisquer outros exames padronizados que existam no Brasil. Basta apenas ter criatividade no desenho dessa expansão gradual. Avaliar esse aspecto da reforma é muito importante, pois o ensino em tempo integral representará um aumento significativo nas despesas com educação. Por essa razão, espero sinceramente que o Ministério da Educação converse com os técnicos do governo federal na área de avaliação de impactos. Gostaria de ressaltar, no entanto, que eu tenho uma preocupação a respeito de como será implementado um outro aspecto da reforma. Eu compreendo a razão da flexibilização do ensino médio. Mas é importante assegurar que tal flexibilidade não cause distorções na oferta das disciplinas que são ofertadas aos alunos mais pobres. Os alunos mais pobres também terão acesso aos cursos avançados em ciência que serão oferecidos em escolas particulares? Se sim, ótimo. Se não, seria uma pena pois isso elevaria a desigualdade da formação no ensino médio, que já é muito grande.
Valor: Como muitas ações dependem de Estados e municípios, seria necessário uma coordenação muito maior das ações da União, Estados e municípios então?
Cunha: É necessário uma estratégia de coordenação e planejamento de longo prazo. No primeiro ano, o governo federal deve consultar os Estados e municípios em busca de iniciativas promissoras. Do segundo ao quinto, você faz avaliação de impacto rigorosa dos programas mais promissores. Do sexto ao décimo, você implementa em larga escala aquilo que foi avaliado e que tenha elevada razão custo/benefício. Depois disso, reinicia-se um novo ciclo para atacar outros problemas. Tal estratégia de longo prazo é necessária para avançar nas áreas de educação e saúde.
Valor: Quais são os principais motivos para o seu pessimismo em relação à educação no Brasil?
Cunha: Primeiro, não vejo planejamento de longo prazo. Até nesse aspecto, vejo que o Brasil não está seguindo outros países da região (como Chile e Colômbia, por exemplo). Segundo, a crise fiscal nos Estados e municí- pios é muito mais séria do que a do governo federal. Então mesmo que tenhamos um plano de ação não acredito que os Estados e municípios terão recursos para implementar políticas promissoras. Nessa realidade, o momento agora é ideal para identificar programas promissores e avaliá-los rigorosamente em pequena escala. Assim que a situação fiscal melhorar, teremos evidência para apontar qual caminho seguir. Quando digo que não existe planejamento de longo prazo, não quero dizer que não existam ideias ou bons programas. Boas ideias e programas existem. O que não existe é uma estratégia de implementação fidedigna em larga escala combinada com avaliação rigorosa. E, se não soubermos se os programas funcionam ou não, de uma maneira objetiva, como poderemos decidir quais delas iremos expandir e quais delas iremos eliminar ao longo do tempo?
Para melhorar a formação de capital humano, é preciso melhorar a qualidade da educação e da saúde na primeira infância” Com a crise fiscal nos Estados e municípios, não conseguiremos elevar salários no magistério tão cedo” Valor: Por que não há uma visão de longo prazo na área de educação?
Cunha: Não é um problema da equipe atual. É um problema institucional, pois os incentivos não estão corretos. Desde 1985, apenas três ministros da Educação ficaram no cargo mais do que dois anos: Murílio Hingel, Paulo Renato de Souza e Fernando Haddad. Então, qualquer pessoa que o presidente Michel Temer tivesse nomeado como ministro, teria que fazer o seguinte raciocínio: “Provavelmente, eu ficarei no cargo por no máximo por dois anos. Nesse período, o que é o melhor que eu posso fazer pela educação no Brasil?” Quando você olha por essa ótica, consegue entender a razão de se propor uma reforma via medida provisória e não via projeto de lei; você consegue compreender quais itens estão na MP e quais não estão. O ministro tem que escolher o que atacar e tem que agir rápido. E, com esses incentivos, acredito que será muito difícil fazer progresso sustentável em educação ou saúde.
Valor: Em entrevista ao em 2014, o sr. disse que, para enfrentar os principais problemas da educação no Brasil, seria necessário “aumentar o investimento no desenvolvimento infantil e definir uma polí- tica sensata para identificar e reter os bons professores”. O Brasil avançou nelas desde então?
Cunha: Acredito que estamos avançando na área de desenvolvimento infantil, sim. A Secretaria de Educação do Ceará está lançando um programa de desenvolvimento infantil que é muito promissor. Tenho grande orgulho e imensa felicidade em poder dar a minha contribuição na avaliação de impacto desse programa inovador. Criar novos programas, juntamente com uma avaliação de impacto, é algo realmente pioneiro no Brasil. Existe a iniciativa do governo federal “Criança Feliz”, baseado no Primeira Infância Melhor do Rio Grande do Sul. Espero, que o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário reconheça a importância de avaliar rigorosamente este novo programa. Seria uma pena se um programa dessa escala, com um potencial de ser replicado em vários outros países do mundo, fosse simplesmente implementado sem nenhum planejamento de avaliação rigoroso.
Valor: E quanto à política em relação a professores?
Cunha: Quanto à política sensata para identificar e reter bons professores, me parece que não [estamos avançando]. Um estudo do IBGE mostrou que professores do ensino básico recebem apenas 60% do salário de um profissional com a mesma escolaridade. Ou seja, não é uma carreira atrativa. E, com a crise fiscal nos Estados e municípios, não conseguiremos elevar salários no magistério tão cedo. Infelizmente, os baixos salários, combinados com a elevada oferta de vagas em pedagogia, provocam “seleção adversa”. Um estudo do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira] mostrou que quase 20% dos candidatos do Enem que ingressaram em uma graduação de pedagogia tiveram uma nota abaixo da nota mínima para conseguir um certificado do ensino médio (que é de 450 pontos). Enquanto 98% dos alunos que ingressaram em Medicina atingiram pelo menos 550 pontos, apenas 17% dos alunos de pedagogia chegaram a esse mesmo patamar. E, combinado com a seleção adversa, temos o problema de descompasso na formação, pois apenas um terço dos professores que ensinam ciências tem graduação na área. Por causa da crise fiscal, no curto prazo será necessário desenvolver e avaliar rigorosamente programas de aperfeiçoamento da formação dos nossos professores. Existem várias alternativas, mas sem saber o custo e o benefício de cada uma delas, será impossível avançar nessa área.
Fonte: Valor