Bancos retomam negócios de risco
Quase um ano depois de o colapso do Lehman Brothers enviar ondas de choque pelo globo, o mundo já não é mais o mesmo. A morte turbulenta do banco de investimentos intensificou a pior recessão desde a Grande Depressão, no anos 30. Ela ajudou a abrir o caminho para um papel mais preponderante do governo na administração da economia. E ainda motiva desconfianças no público sobre o dogma de permitir que os próprios mercados se corrijam.
Mas, surpreendentemente, há algumas coisas importantes que o sumiço do Lehman não modificou. Em termos de regulamentação, os esforços do Partido Democrata americano para modificar as regras do setor financeiro estão atoladas em meio a disputas entre autoridades do governo, a fúria dos banqueiros e a oposição de vários políticos que acreditam que expandir ainda mais o papel do Estado na economia só vai criar mais problemas. O debate intenso sobre a reforma do sistema de saúde dos Estados Unidos enfraqueceu o entusiasmo para que se escreva uma legislação tão complexa assim.
Enquanto isso, vários bancos americanos recuperaram o equilíbrio e até um pouco da empáfia. Os lucros se recuperaram desde o auge da crise. Os salários milionários estão de volta. E também voltaram os negócios arriscados.
As empresas estão vendendo produtos financeiros exóticos, parecidos com aqueles que derrubaram os mercados e a economia mundial no ano passado. E o apetite dos bancos por riscos cresceu: os cinco maiores bancos dos EUA podiam perder, em média, mais de US$ 1 bilhão por dia no segundo trimestre de 2009 se suas apostas dessem errado, um nível recorde.
Agora o governo americano está aprisionado num limbo de regulamentação. As autoridades do país dizem que estão comprometidos em evitar que a história se repita e prometeram obter novos poderes para evitar uma nova crise. Mas hoje em dia há poucas opções – exceto outro resgate em massa – se os mercados financeiros voltarem a congelar ou outra grande empresa do setor quebrar. “Não houve nenhuma mudança fundamental na maneira como os bancos são dirigidos ou regulamentados”, disse Peter J. Solomon, um ex-vice-presidente do conselho do Lehman que hoje chefia um banco de investimentos com seu nome, em Nova York. “Só diminuiu mesmo o número deles.”
As autoridades em Washington se dizem encorajadas pela aparente recuperação dos mercados e da economia depois do tumulto recente. Mas também dizem que é preciso criar urgentemente novas regras.
“Não temos ilusão de que, se deixarmos que as coisas se ajeitem sozinhas, voltaremos a uma normalidade saudável”, disse o diretor do Conselho Nacional de Economia da Casa Branca, Lawrence Summers, em entrevista ao Wall Street Journal. “A preocupação (…) é que o retorno à confiança, que é uma coisa boa, não se traduza numa volta à arrogância, o que seria uma coisa muito ruim.”
A recuperação de Wall Street tem vantagens e desvantagens para o cidadão comum. Os clientes dos bancos têm exibido apetite renovado por riscos, num sinal de que a confiança está voltando. Mas o crédito continua escasso para todos exceto os tomadores mais sadios, e os credores estão impondo novas taxas e juros mais altos nos cartões de crédito e em outros produtos. As empresas também enfrentam problemas para obter financiamento se não tiverem acesso ao mercado de renda fixa ou contarem com avaliações de risco abaixo dos graus mais elevados.
O mundo financeiro está numa montanha russa desde 14 de setembro de 2008, o domingo em que o Lehman se preparou para pedir concordata. A Média Industrial Dow Jones caiu de 11.422 em 12 de setembro para 6.547 em 9 de março. Mais de cem bancos faliram. O governo americano injetou nos bancos mais de US$ 200 bilhões do contribuinte e considerou temporariamente que os 19 maiores bancos do país eram grandes demais para quebrar desordenadamente.
É improvável que algumas das práticas mais notórias de Wall Street ressurjam. Os bancos afirmam que abandonaram para sempre a prática de contabilizar ativos imobiliários de alto risco em veículos de investimento fora do balanço. Os maiores bancos também se encheram de capital, fortalecendo as reservas para o maior nível dos últimos tempos e propiciando um colchão mais polpudo para suavizar o impacto de futuras crises no mercado. Em dezembro, numa festa de gala no Plaza Hotel de Nova York, o diretor-presidente do Bank of America Corp., Kenneth Lewis, disse a um grupo de banqueiros que se preparassem para a emergência de um setor mais humilde em meio aos escombros da crise. “Temos um papel coadjuvante na economia, não principal. Serviços financeiros são um meio, não a finalidade”, disse Lewis. “E deveria existir mais humildade nisso.” A plateia aplaudiu.
Mas esse estado de espírito começou a mudar enquanto a Média Dow Jones se fortalecia no decorrer de 2009. Alguns dos programas governamentais de socorro já chegam ao fim e alguns bancos importantes começaram a devolver o dinheiro recebido do governo pelo Programa de Alívio de Ativos Problemáticos, ou Tarp na sigla em inglês, do Federal Reserve, o banco central americano. Com isso, se veem livres do controle de Washington. Os cinco maiores bancos de Wall Street – Bank of America, Citigroup Inc., Goldman Sachs Group Inc., JPMorgan Chase & Co. e Morgan Stanley – tiveram lucro de US$ 23,3 bilhões nos primeiros seis meses de 2009. Há um ano, o total desses bancos e das firmas que compraram era um prejuízo de US$ 6,7 bilhões, ante lucro de US$ 49,8 bilhões no primeiro semestre de 2007, o auge do boom de Wall Street.
Os maiores geradores de lucro desses bancos continuam a ser as suas mesas de operações, que fazem aplicações de curto prazo – boa parte delas com dinheiro dos próprios bancos – em ações, títulos, commodities, câmbio e outros mercados e produtos financeiros.
Os prejuízos nessas divisões nos últimos anos enfraqueceram firmas como Merrill Lynch & Co. e Citigroup. Este ano, essas operações voltaram a dar lucro. No primeiro semestre de 2009, os cinco maiores bancos obtiveram uma receita de US$ 56 bilhões com essas operações, ante US$ 22 bilhões no primeiro semestre de 2008 e US$ 58 bilhões no auge do boom. Em 46 dias do segundo trimestre os operadores do Goldman embolsaram receita de pelo menos US$ 100 milhões, e perderam dinheiro em apenas dois dias no período.
No geral, os grandes bancos assumiram riscos maiores nas operações do que há um ano, com base num indicador padronizado chamado valor em risco. O potencial prejuízo de US$ 1 bilhão que os cinco maiores bancos podiam sofrer no segundo trimestre era 18% maior que o de um ano antes e 75% maior que os US$ 592 milhões registrados no primeiro semestre de 2007, segundo informes às autoridades do mercado.
Wall Street “voltou de fininho à ativa”, disse Robert Glauber, que chefiou até 2006 a Associação Nacional de Corretores de Valores, o braço de autorregulamentação de Wall Street. “A memória deles é curta.” Apesar do contínuo clamor contra a remuneração de banqueiros, gordos pacotes ainda são a norma em algumas companhias que tentam atrair talento e evitar que concorrentes lhes tirem seus empregados.
No primeiro semestre de 2009, as cinco maiores firmas reservaram cerca de US$ 61 bilhões para cobrir remuneração e benefícios para seus empregados. Um ano antes, o total para essas firmas, mais os grandes bancos que elas depois adquiriram, estava em torno de US$ 65 bilhões; no primeiro trimestre de 2007, o número era de US$ 77 bilhões. Por empregado, os pagamentos podem exceder anos anteriores, já que as firmas eliminaram dezenas de milhares de empregos coletivamente.
Este ano, o Congresso americano impôs restrições ao pagamento de bônus. Então, várias companhias, entre elas o Bank of America e o Citigroup, optaram por pagar salários maiores. O JPMorgan está planejando fazer o mesmo. A tendência chamou a atenção de líderes mundiais. “O enfraquecimento das tensões financeiras levou algumas instituições financeiras a imaginar que podem retornar aos mesmos modos de operação de antes da crise”, escreveram o primeiro-ministro britânico Gordon Brown, o presidente francês Nicolas Sarkozy e a chanceler alemã Angela Merkel numa carta a líderes mundiais em 3 de setembro. Os três defenderam novos e rígidos limites para pagamento de bônus.
Autoridades já disseram aos bancos que evitem risco excessivo, mas não foram específicas, dizem executivos. De fato, membros do governo americano estão estimulando os bancos a voltar à lucratividade logo, o que executivos de Wall Street têm interpretado como uma abertura para que operem com vigor.
Esperava-se que a Goldman e o Morgan Stanley passassem a ser supervisionados com mais rigor depois de terem se transformado, em fins do ano passado, em empresas bancárias sob a guarda do Fed. A mudança ocorreu para que ambos tivessem acesso a recursos do governo e para aliviar temores quanto a sua estabilidade.
Ambos reduziram suas apostas com dinheiro emprestado. Para cada dólar de ativos negociados em seus livros, as firmas estão reservando cerca de o dobro do capital que reservavam em anos anteriores, segundo Brad Hintz, analista da Sanford C. Bernstein & Co. Essa desalavancagem torna seus negócios mais seguros mas menos lucrativos. Mas muito continua como dantes. Esperava-se que os dois bancos vendessem usinas de energia e poços de petróleo que possuem em suas divisões de operações de commodities, porque bancos comerciais geralmente não são autorizados a deter ativos físicos como esses. Mas os bancos, depois de uma discussão com o Fed, acreditam que são autorizados a mantê-los por causa de uma cláusula de uma lei federal que permite a bancos recém-criados deter companhias a fim de reter certos ativos que têm há muito tempo, segundo pessoas a par da questão.
Talvez o melhor indicador da volta da exuberância em Wall Street seja a incessante busca de engenharia financeira exótica. O mercado de derivativos de crédito, amplamente acusado de ajudar a desestabilizar os mercados, continua vasto.
Em 31 de março, o valor nocional de derivativos de crédito existentes no sistema bancário dos EUA, uma medida muito usada, estava em US$ 14,6 trilhões, segundo o Gabinete da Controladoria da Moeda, órgão que regulamenta os bancos americanos. É uma queda de 8% em relação ao trimestre anterior, mas ainda quase o triplo dos US$ 5,5 trilhões de três anos atrás.
Os “swaps de taxa de retorno total” – um tipo de derivativo que caiu de moda durante a crise – estão entre os instrumentos que estão voltando, dizem banqueiros e investidores. Bancos usam esses instrumentos para oferecer financiamento de baixo custo a fundos de hedge, que em troca usam os recursos para comprar empréstimos alavancados ou outros ativos do banco. Os fundos de hedge põem os ativos adquiridos como garantia para o empréstimo. Durante a crise, os swaps prejudicaram bancos que tomaram os ativos usados como garantia mas descobriram que seus valores haviam despencado junto com os mercados em geral.
Até obrigações de dívida colateralizada, conhecidas pela sigla em inglês CDO, talvez a maior fonte de perdas na história de Wall Street, estão voltando, de certa forma. Bancos estão desmontando títulos produzidos pela combinação de hipotecas residenciais e comerciais e rearranjando-os em instrumentos que especialistas descrevem como mini-CDOs. O objetivo é transformar os títulos lastreados por hipotecas, tidos como de alto risco, em instrumentos mais palatáveis ao investidor.
Firmas de Wall Street defendem seu uso de produtos complexos. “Um produto estruturado ou engendrado pode ser totalmente apropriado para o comprador”, disse o porta-voz do Citigroup Alex Samuelson, cujo banco está entre os que têm oferecido novos tipos de derivativos a investidores. “Não são intrinsecamente ruins.”
O governo Barack Obama, autoridades do mercado e muitos parlamentares acreditam que mais regulamentação é necessária para proteger a economia dos EUA contra outra crise e aumentar a confiança. Certos elementos desfrutam de amplo apoio, tais como uma proposta para dar poder a membros do governo de intervir e desmembrar grandes companhias financeiras que estejam cambaleando. Muitas autoridades acreditam que tais poderes teriam permitido ao governo mitigar o impacto do colapso da Lehman.
Fonte: Valor
