A história coletiva de Luana Génot
Ao ouvir que sua negritude era um obstáculo, a comunicadora Luana Génot, 31 anos, teve uma das grandes viradas de chave que permitiram a ela se tornar, menos de uma década depois, a criadora de uma organização pioneira no país comprometida em acelerar a promoção da igualdade racial no mercado de trabalho brasileiro.
Mestre em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET) do Rio de Janeiro, ela iniciou o projeto do Instituto Identidades do Brasil em 2016. Junto dele, nasceu a campanha “Sim à Igualdade Racial”, exatamente para fazer as pessoas refletirem sobre raça e mercado de trabalho. Hoje, a organização também promove o Prêmio Sim à Igualdade Racial, que terá a sua terceira edição em 2020.
O objetivo é homenagear agentes na causa dentro dos pilares de empregabilidade, educação e cultura. Como maratonista dedicada que é, Luana está habituada a corridas longas a ritmo constante. A exemplo de uma atleta olímpica, ela sabe da importância de características como resistência, foco, força, preparação e visão – mesmo quando a linha de chegada ainda parece distante.
No Dia Internacional contra a Discriminação Racial, celebrado hoje (21), Ecoa conta a trajetória pessoal e profissional da executiva e ativista que aprendeu cedo que a comunicação seria um dos seus pontos mais fortes, e apostou na máxima de que cada passo a aproxima de seu objetivo.
Mercado precisa mudar
Tentar a carreira de modelo fez parte de um processo de autoaceitação. Foi no bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, que Luana foi criada pela mãe e pela avó, mulheres independentes e de opiniões fortes que a ensinaram sobre a importância de “saber se colocar”. “Essas mulheres sempre me puxaram muito para a realidade”, conta Luana.
Sua mãe, a funcionária pública Ana Cristina, trabalha como técnica de enfermagem há décadas e passou para a filha o legado da independência. Desde muito cedo, quando ela me via acanhada, dizia: “Você precisa ir lá e pleitear aquilo que você quer.”
Quando Luana tinha 9 anos, Ana Cristina não hesitou em mudar a filha de escola após um episódio não reconhecido de racismo. Ao ver que a filha chegava em casa aborrecida por causa das injúrias proferidas pelos coleguinhas, decidiu falar com a diretora e ouviu dela que aquilo era apenas “brincadeira de criança”. “Mas aquilo não era brincadeira, aquilo era racismo”, diz Luana. A diretora não se prontificou a fazer qualquer tipo de ação educativa e a mãe decidiu tirá-la da instituição.
Uma série de episódios como esse compõem uma história marcada pela discriminação racial durante a infância e a adolescência, época em que as pessoas apontavam para Luana, que já era alta, comentando como ela era exótica – e não bonita. “Aos negros não cabe o adjetivo ‘bonito’. É sempre o exótico, aquilo que não é muito familiar, é quase animal. Eu me sentia esse animal.”
Foi nesse período que Luana decidiu “fazer algo com a sua beleza exótica”. Ao circular pelos corredores do Fashion Rio, principal evento de moda do Rio de Janeiro, a moça de vestido e salto alto chamou a atenção de uma jornalista francesa e foi convidada para participar de um projeto na Europa. Em uma tentativa de se candidatar para fazer parte do casting de uma agência de modelos na França, o agente a repreendeu, dizendo que ser negra no mundo da moda era um problema. “De 300 garotas que estampavam com suas fotos as paredes da agência, apenas três eram negras”, conta.
Racismo limita carreira
Dentro do mundo fashion, Luana teve oportunidade de morar e trabalhar na Cidade do Cabo, na África do Sul, em Paris e em Londres, principalmente como modelo de passarela. Mas o fato de ser escalada para eventos relacionados à África ou focados em mulheres negras gerou uma inquietação que deu origem ao blog “O Lado Negro da Moda”, uma espécie de diário pessoal com os primeiros esboços acadêmicos do que ela escreveria um pouco mais tarde sobre raça e mercado de trabalho.
“Atuando no mundo da moda eu percebi que precisava ser um vetor de mudança e podia colocar isso em prática de alguma forma”, diz. Escrever sobre essas questões despertou o desejo e a necessidade de cursar comunicação para ter mais ferramentas e construir uma narrativa sólida a respeito do tema. Luana passou no vestibular da Pontíficia Universidade Católica (PUC) do Rio para comunicação social e publicidade em 2010. Organizou eventos sobre identidade no campus e, em 2012, foi aprovada como bolsista do Programa Ciência Sem Fronteiras na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
“Existe um signo global que é o racismo, que restringe o trânsito das pessoas negras em relação aos papéis que elas podem exercer, e a gente não falava sobre isso. Eu não podia fazer o papel de uma mulher rica, por exemplo”, diz Luana.
Inspirada em Michelle
Nos EUA, Luana trabalhou na Coalisão Multicultural Estudantil com ações de identidade e inclusão e atuou na agência de publicidade Burrell Communications, de Chicago, focada no público afro-americano. Ter uma chefe negra foi uma inspiração. “Observar a McGhee Williams, CEO da empresa, que liderava mais de 100 pessoas, me fez pensar sobre como trazer essa realidade para o Brasil e trabalhar a imagem do negro na publicidade em nosso país.”
Com sede de aproveitar cada minuto de sua estadia nos EUA, Luana procurou o gabinete de apoio da campanha de Barack Obama, que concorria à reeleição para a presidência dos Estados Unidos, e se tornou voluntária para registrar eleitores e entregar panfletos. Ela também teve a oportunidade de acompanhar discursos dele em caravanas pelo país. “Eu fazia aquilo com gosto porque entendia que ter um candidato negro que me representasse de alguma forma, mesmo não sendo no meu país, era algo muito importante”, conta.
“É graças ao fato de ter sido voluntária na campanha do Barack Obama e ter tido proximidade com pessoas que me inspiraram muito que eu tenho hoje o Instituto. Porque pude me ver, por meio da mensagem deles, em cargos de poder, que eu, mulher negra, brasileira, poderia também estar à frente de uma instituição”, diz ela.
Para ela, só é possível mudar a mentalidade das pessoas com mais mulheres negras em todos os espaços. “E isso é possível, é realista, sou a Michelle Obama brasileira realista.”
Por mais histórias assim
Mais do que tentar galgar uma carreira executiva, Luana tinha como objetivo fazer com que sua história não fosse uma história única. Por meio do ID_BR, ela e sua equipe de 15 pessoas criaram o prêmio “Sim à Igualdade Racial” para mapear e reconhecer as principais práticas do Brasil nesse sentido. “Há uma série de pessoas e organizações no país inteiro fazendo isso, e a gente tem de jogar luz sobre essas iniciativas para que elas se multipliquem”, diz. “As pessoas negras já são maioria no Brasil; só precisam de uma oportunidade para subir mais um degrau.”
Inspirada pelo movimento de ações afirmativas existente nos Estados Unidos, Luana decidiu focar no mercado de trabalho para poder ver resultados reais. Um dos principais alertas, por exemplo, é que hoje mulheres negras ocupam apenas 0,4% dos cargos executivos nas 500 maiores empresas do país, apesar de serem parte de uma parcela majoritária de mais de 110 milhões de pessoas. Por isso, o ID_BR se dedica a fazer com que cada vez mais instituições invistam em iniciativas que tenham como objetivo a igualdade racial.
É o caso, por exemplo, da Aegea, empresa de saneamento ambiental que atua com o ID_BR desde 2017. “Trabalhar com o Instituto fez com que mudássemos a nossa forma de ver e de tratar a questão da igualdade racial dentro da companhia”, diz o diretor de operações Joselio Alves Raymundo, 43 anos. O executivo foi convidado para participar de um jantar onde conheceu Luana Génot e o trabalho do “Sim à Igualdade Racial”. “Desde então, várias ações foram feitas, como rodas de conversa, censo, sensibilização dos colaboradores”, diz Raymundo. “O clima interno tem melhorado significativamente.”
Pela metade do topo
Cheia de planos mirabolantes, como ela gosta de dizer, Luana espera ver pelo menos 50% das mulheres negras em cargos de liderança nas empresas até os seus 75 anos. A projeção feita por ela tem base em uma perspectiva do Instituto Ethos de 2016 que demonstra que, para a igualdade racial acontecer no Brasil no ritmo em que estamos agora, serão necessários 150 anos.
“Não sei se sou capaz de acabar com o racismo no mundo, não quero essa responsabilidade, mas quero dar o meu máximo”, diz Luana.
“Em até uma década quero que o Instituto esteja espalhado por diversas capitais do Brasil e pretendo me ocupar de ser porta-voz dessa causa. Hoje escrevo uma coluna, espero poder fazer triatlo. Quero me dedicar mais ao esporte e ter minha voz mais ecoada falando sobre esse e outros temas relevantes”, finaliza a comunicadora.
Fonte: NULL