O outro lado de uma tragédia brasileira
A sociedade
brasileira sempre acreditou que as condições precárias das rodovias seriam as
maiores responsáveis pelo altíssimo índice de acidentes de trânsito, com
recordes mundiais de mortes, cerca de 40 mil por ano. Pelo fato de mais de 60%
dos trechos rodoviários estarem em estado ruim ou péssimo, supunha-se uma
conexão direta com a infraestrutura, não importando o tipo de usuário dessas
estradas. Pesquisa do Núcleo CCR/FDC de Infraestrutura e Logística da Fundação
Dom Cabral, porém, apresenta outro elemento dessa equação vergonhosa, cujo
impacto equivale ao ligado à parte estrutural das rodovias: o comportamento
humano. De maneira contundente, a pesquisa indica que os motoristas brasileiros,
em geral, têm um comportamento inadequado, independentemente do estado de
conservação das estradas.
Os acidentes mais
comuns em trechos em boa ou ótima condição são saída de pista, capotamento e
colisão traseira. Essas ocorrências têm alta correlação com veículos em alta
velocidade, o que indica que os motoristas, ao se depararem com uma boa estrada,
tendem a pisar no acelerador. Por outro lado, o tipo mais comum de acidente em
trechos ruins é a colisão frontal – aliás, é o que provoca o maior número de
mortes. Isso significa que o motorista brasileiro, julgando-se “conhecedor” da
estrada, tende a adivinhar que outro carro não está vindo na direção oposta, o
que resulta em tragédia.
A probabilidade de um acidente com vítimas de morte aumenta
mais ainda quando os veículos são mais antigos e, portanto, a tecnologia de
proteção ao motorista e ao passageiro contra o impacto é praticamente
inexistente.
Todos os dez trechos
com maior índice de acidentes analisados pela pesquisa apresentaram movimentos
com características urbanas. Quando esse fato é associado a um acúmulo de 40%
das ocorrências nos fins de semana, e mais de 60% dos acidentes com vítimas de
morte entre a meia-noite e as 6 da manhã, infere-se uma altíssima correlação com
o uso do álcool nas periferias das grandes cidades, onde esses trechos estão
situados. É uma mistura perigosíssima de comportamento inadequado associado ao
alto volume de tráfego em horários definitivamente incompatíveis com a alta
velocidade. Além disso, há uma mescla de tráfego de longa distância, próprio de
viagens mais extensas, com deslocamentos curtos característicos do movimento
urbano, promovendo assim uma combinação perigosa. O propósito da viagem é um
elemento importante na constituição das características de
deslocamento.
Os investimentos
permanentes em equipamentos de segurança, principalmente nas rodovias
concedidas, têm-se mostrado eficientes, pois nelas o número de acidentes fatais
diminuiu 50%, mesmo com o aumento expressivo no volume de tráfego. Sendo assim,
mesmo que porventura haja um aumento no número de acidentes, os recursos para
segurança minimizam a gravidade. Muito mais do que pensar em pedágio, é chegada
a hora de uma discussão voltada para a preservação da vida, e não para a relação
custo-benefício puramente focada no paradigma financeiro. Infelizmente, no
Brasil ainda se dá mais importância à discussão de quanto se paga para usar uma
rodovia do que quanto se perde em vidas pela falta de investimentos em segurança
viária.
Não obstante os
recursos destinados à segurança viária, a análise de 120 mil casos de acidentes,
coletados para o banco de dados da pesquisa entre 2005 e 2009, indica que o
caminho que o Brasil está percorrendo é o de banalizar essa tragédia, tanto pelo
lado da irresponsabilidade social do indivíduo que dirige um veículo quanto do
gestor público que fecha os olhos para as possíveis ações de mitigação. As
colisões frontais, por exemplo, muitas vezes têm o componente do veículo velho,
principalmente nas ultrapassagens em aclive, onde a aceleração se transforma em
elemento vital para evitar o choque. Muitos desses veículos nem deveriam estar
no sistema, mas a discussão técnica é substituída pelo “vale tudo pelo social”,
inclusive a transgressão de regras de trânsito, que põe em risco a vida de quem,
muitas vezes, é vítima do acaso por estar no caminho do beneficiado
social.
Outro ponto é a
fiscalização absolutamente precária. Durante a pesquisa de campo, vários
depoimentos de policiais rodoviários indicaram até falta de combustível nas
viaturas para atendimento aos acidentados em rodovias. Ou seja, o número de
vítimas de morte poderia ter sido consideravelmente reduzido com socorro mais
rápido. É até o caso de perguntar se esses profissionais são as primeiras
vítimas das estradas. Além disso, depoimentos de motoristas deram um contorno
claro do sentimento de impunidade, lamentavelmente apontando para uma sensação
de irresponsabilidade diante da tragédia ocorrida ou prestes a ocorrer. Entre
tais depoimentos, os pesquisadores puderam constatar que muitos motoristas não
se preocupavam sequer com as vidas ceifadas por seus atos de irresponsabilidade,
chegando a pôr a culpa no destino, com alguns dizendo lamentarem o fato de as
vítimas estarem no lugar errado no momento errado.
A pesquisa mostra,
lamentavelmente, que os acidentes de trânsito no Brasil têm dois grandes
componentes: a rodovia e o motorista. Se o País precisa de muito mais
investimentos em infraestrutura, sabe-se que o limite da disponibilidade de
recursos financeiros está no princípio do sentimento de cada indivíduo sobre sua
responsabilidade social no trânsito. Não adianta o Brasil criar o melhor sistema
rodoviário do mundo se as pessoas que o utilizam não desenvolverem uma atitude
de compartilhamento de riscos e deveres com todo o conjunto de variáveis que dá
forma ao sistema. E o que os dados inferem até agora é que o brasileiro pode até
ser um excelente piloto, mas, sem sombra de dúvida, é um péssimo motorista, com
altíssimo grau de individualismo e desprezo pela vida
alheia.
Fonte: O Estado de São Paulo