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Trilogia do pensamento brasileiro

Houve um tempo em que o silêncio dos intelectuais era quase um crime. Desse tempo fizeram parte três brasileiros: Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Caio Prado Jr. (1907-1990). Este ano, coincidentemente, reúne várias efemérides em relação aos três. Centenário de Prado Jr., o mais jovem, 20 anos de morte do mais velho, Freyre, e 25 anos da morte de Buarque. A editora Brasiliense comemora o centenário de Prado Jr. com o lançamento da primeira biografia digna de seu fundador: “Caio Prado Jr. – Uma Trajetória Intelectual”, de Paulo Teixeira Iumatti, historiador e professor da Universidade de São Paulo (USP), com reunião de farta iconografia e documentos do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Freyre é triplamente lembrado, com o lançamento de “Gilberto Freyre – Uma Biografia Cultural”, escrita por dois especialistas na obra do escritor pernambucano, os professores uruguaios Enrique Rodriguez (Universidade Cândido Mendes) e Guillermo Giucci (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), e o do livro “Em Torno de Gilberto Freyre”, de Edson Nery da Fonseca, amigo do escritor. A outra homenagem ainda está por vir. No dia 27, o Museu da Língua Portuguesa, de São Paulo – o mais visitado do país -, abre a exposição “Gilberto Freyre – Intérprete do Brasil”.
Estilos de barba mais comuns no Brasil do século XIX no traço de Freyre, que também era desenhista: o caráter de qualquer um pode ser formado como a própria nação, na sua famosa expressão, a partir de “equilíbrio de antagonismos
Seguindo sua linha de sucesso, o museu pretende menos didatismo ou retrato biográfico e mais – com seus primorosos recursos multimídia – despertar no público curiosidade sobre a obra de Freyre. Todas as primeiras edições de seus 81 títulos estarão expostas. Documentos históricos usados por ele, alguns do século XVIII, foram selecionados para contar o processo de pesquisa do maior pensador do hibridismo brasileiro. A instalação está sob a responsabilidade do premiado cenógrafo André Cortez. “O autor foi o precursor do conceito de patrimônio imaterial, tão discutido hoje em dia e que encontra aqui seu espaço mais significativo no país”, ressalta Antônio Carlos Sartini, diretor-executivo do museu.
Já em relação ao historiador Sérgio Buarque de Holanda, a Casa da Palavra vai lançar neste mês, em tiragem limitada, a obra “Buarque, uma Família Brasileira”, de Bartolomeu Buarque de Holanda. Serão dois volumes: um romance histórico e um ensaio histórico-genealógico, escritos depois de 20 anos de pesquisa sobre os Buarque, Holanda e Gusmão “e outras famílias entrelaçadas que construíram e sintetizam a história do Brasil”, segundo a editora.
Este ano também tem outra efeméride: os 40 anos de um célebre prefácio que o crítico Antonio Candido escreveu para “Raízes do Brasil”, de Buarque. Em pouco mais de 12 páginas, o maior crítico literário do país coloca a obra destes três autores em seu devido lugar: ombro a ombro. Segundo ele, três livros foram fundamentais para a sua geração integrar-se no debate em pauta naqueles anos em que discutir fazia muita diferença para o meio intelectual. Em ordem cronológica: “Casa-Grande & Senzala” (1933), de Freyre, “Raízes do Brasil” (1936), de Buarque, e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942), de Prado Jr.. “São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”, escreve. É de Candido a melhor definição para o ocorrido com o lançamento de “Casa-Grande”: um terremoto.
“Grupo de Negros (em frente da Igreja S. Gonçalo)”, litografia de F.H. Carls: as relações entre senhor e escravo, a cultura das elites e a miscigenação estão entre os temas analisados de forma inovadora nas obras de Freyre, Buarque e Prado Jr.
Embora o prefácio tenha corroborado para a sobrevivência do pensamento desses autores em meio ao que Candido batiza de “platibanda liberalóide”, as obras constituíram-se perenes por elas mesmas. Mas faltava, até agora, um pouco de carne a esses homens. É isso que essas novas biografias lhes devolvem.
Os três foram pessoas de outro tempo, arredios às exposições fáceis, de raras entrevistas e econômicos para falar de si mesmos. Esta é, aliás, uma dificuldade apontada pelos pesquisadores na árdua tentativa de reconstruí-los. Seus arquivos foram só recentemente abertos. Portanto, o ano marca um certo redescobrimento. E este enobrece, mas também desmistifica.
No caso de Caio Prado Jr., Iumatti acerta ao abandonar qualquer tentativa de justificar ou defender as idéias do militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e fundador da Aliança Nacional Libertadora, de caráter marcadamente socialista, que ecoaria hoje com forte tom anacrônico. “Meu objetivo foi tão só esboçar os principais traços de sua trajetória de vida sem perder de vista o que podem fornecer para a compreensão da fortuna intelectual do escritor e da trajetória do militante político”, explica o jovem historiador.
Iumatti ressalta que poderia excluir a abordagem de fatores de ordem pessoal, mas “o público e o privado estão neste momento muito imbricados”. Ainda bem. O livro mostra um Prado Jr. que comeu, bebeu e se casou três vezes. Como parte do princípio de que o leitor conhece, ao menos, o maior livro do autor, Iumatti dedica-se a desvendar o homem, suas leituras, influências e posições diante da imensidade do desafio de uma sociedade igual. Desprega-se, assim, o rótulo de um Prado Jr. que, em nome da causa, teria rompido totalmente com sua classe social. Nas idéias, sim. Mas o capítulo “Vida Pessoal”, ilustrado com 11 fotos, mostra Prado Jr. como um inegável tetraneto do barão de Iguape, um certo Antônio Prado, que entrou para a história por hospedar d. Pedro I, quando o príncipe deu um pulinho a São Paulo para conhecer a marquesa de Santos e proclamar a Independência.
É preciso aqui abrir um parêntese para explicar a posição de Prado Jr. na labiríntica árvore da família Prado. Ele é neto de Martinico, filho de Martinho e Veridiana, a propósito tio e sobrinha – já que ela era filha de Antônio, o barão, irmão do mesmo Martinho. Prado Jr. também se perde no labirinto dos Penteado, por parte de mãe. Seu avô era o conde papal Antonio Álvares Penteado (pai do Armando que deu nome à Faap). Enriquecera este com a fabricação de sacos de juta para o café no fim do século XIX e começo do XX. Como se sabe, essa ascendência fazia escandalosas as posições de Prado Jr. na sociedade da época. Sua condenação da visão apenas pecuniária da propriedade rural, sem verdadeiro “apego à terra”, e a classificação da imigração italiana – da qual sua família foi protagonista – como continuação do tráfico negreiro, entre outras, impunham-lhe o ostracismo até nas reuniões do clã.
No entanto, no particular, Prado Jr. permanecia um galho dessa aristocracia. “Se via que ele era da classe social dele, procuro mostrar essas contradições, embora ele tenha sofrido por sua posição autônoma”, diz Iumatti. No livro, com base em testemunhos, mostra-se um Prado Jr. fidalgo até no “modo de segurar a xícara de café”. Era um conflito ambulante entre a formação elitista e a opção de vida. Obrigava os filhos a empunhar luvas, quando estas já haviam caído em desuso. Era um Prado Jr. revoltado com as ações da família latifundiária, mas empenhado em regar a árvore dos Prado para manter suas tradições históricas. Guardava documentos, datas e lutava em preservar os referenciais cristalizados nos edifícios da capital paulista.
Explica-se, assim, a tolerância do PCB às idéias nem sempre alinhadas de seu ilustre filiado. Era uma situação repetida na história da legenda em que há uma dependência mútua de certos quadros. Um servia de chave para o outro entrar em mundos duais. Mas Prado Jr. vai ferir sua característica debatedora, em situações cruciais, por enxergar os regimes autoritários comunistas com os olhos do PCB, embora defendesse para o Brasil a liberdade de exercício dos direitos civis. “Ele assumiu um custo pessoal, mas embora contestado tremendamente se manteve respeitado”, afirma o biógrafo.
Bem-sucedido nessa empreitada de humanizar o pensador, Iumatti caminha sobre aspectos desconhecidos do processo de construção do aparato científico para a elaboração da produção sociológica, antropológica, política, econômica, enfim, multidisciplinar, que constituiu as cores marcantes do retrato intelectual do autor de “Formação do Brasil Contemporâneo”. “Pensar em Caio Prado Jr. só como historiador é andar a contrapelo de sua trajetória intelectual, forjada por poderoso mix de engajamento político com rigorosa disciplina intelectual”, afirma István Jancsó, ex-diretor do IEB.
Nessa trilha, surge um Prado Jr. que não só se entrega ao debate imposto por aquele momento histórico, mas também um homem normal que nunca fugiu aos seus erros. “Ele procurou o diálogo, não tinha medo da exposição e muito menos de errar, tinha coragem e isso marcou uma posição intelectual de responsabilidade”, observa o biógrafo. O exemplo maior é a mudança em relação à reforma agrária. Prado Jr. caminhou para outra posição, na qual seria dispensável ao camponês a propriedade, mas fundamental a garantia de uma condição digna de trabalho rural. Para ele, o método dialético implicava analisar cada fato em sua conjuntura temporal e era preciso abandonar “receituário de fatos, dogma” ou “esquemas abstratos preestabelecidos”.
Há revelações. Nos dois primeiros capítulos, Giucci e Larreta contam a rigorosa formação educacional imposta pelo pai e as descobertas sexuais instintivas do menino de engenho que foi Freyre. Suas primeiras experiências, pouco ortodoxas, comandadas por moleques da bagaceira afeitos à felação nos “sinhozinhos”, insinuam um homem em conflito com sua sexualidade e explicam boa parte do peso carnal que o autor decantou sob sua antropologia, inspirada no modelo dos Estados Unidos, onde estudou e deslanchou com precoce produção acadêmica.
Neto de senhor de engenho, embora com vida urbana e de classe média baixa, Freyre assim se explica, segundo os biógrafos, por si só. Como se menino de engenho que se misturou desde a infância desembocasse no antropólogo defensor de um igualitarismo racial, ou melhor, de uma não-raça. Freyre teria buscado no filósofo positivista e darwinista inglês Herbert Spencer ou no etnicista Franz Boas apenas sustentação teórica para confronto porque, na definição do escritor mexicano Alfonso Reyes, já havia “segurado o Brasil pelo cordão umbilical”.
Assim como Iumatti, os biógrafos de Freyre o desenham com traços realistas. Ora ele aparece reacionário, ora progressista, ora conservador, ora machista, ora brilhante, mostrando que o caráter de qualquer um pode ser formado como a própria nação, na famosa expressão dele próprio, a partir de “equilíbrio de antagonismos”. É assim que Freyre passou a protagonizar o debate a partir de “Casa-Grande”. Surge, depois da publicação do livro, uma literatura exegética. De tudo um pouco já se atacou a obra de Freyre e aqui não cabe reproduzir essas críticas, amplamente relatadas no livro. O que interessa é que ele nunca fugiu delas e isso o fazia intelectual daquele tempo.
É nesse diálogo obsessivo que se diferenciavam formuladores e comentadores e é nessa necessidade de troca que os três intérpretes do Brasil vão se cruzar. “Casa-Grande” está presente em “Formação do Brasil Contemporâneo” e em “Raízes do Brasil”. Freyre era amigo de Buarque fazia sete anos e este recebeu um agradecimento no prefácio de “Casa-Grande”. Freyre leu “Evolução Política do Brasil”, de Prado Jr., depois de escrever “Casa-Grande” e fez questão de incorporar uma nota manifestando sua concordância com aspectos da interpretação materialista daquele jovem de 26 anos. Prado Jr. criticou o “homem cordial” de Buarque.
Desse debate surgiu a nova sociologia ou nova historiografia sem compromissos com o pessimismo racial ou de classe de até então. Freyre, Buarque e Prado Jr., a despeito de críticas ou defesas apaixonadas de suas posições, reinventaram o papel do intelectual, do acadêmico e sua função em determinado momento histórico, provocando o debate e abraçando, de vez, a pesquisa empírica. Ou, como define Evaldo Cabral de Mello, usando metáfora cara a Freyre, escreveram obras que “levavam a marca registrada dos grandes historiadores, vale dizer, a tesão pelo concreto”.

Fonte: Valor

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