Céu e inferno nas cidades
O prefeito de São Paulo José Carlos de Figueiredo Ferraz já via com olhar dramático, há 30 anos, aonde o crescimento desordenado havia levado a maior cidade do país: “Tudo em ti agora é grande, teus feitos e teus problemas”, disse, ao assumir a prefeitura, em 1971. Entusiasta do metrô – foi dos que mais trabalharam para viabilizar a primeira linha, a Norte-Sul -, Figueiredo Ferraz (1918-1994) era um crítico da submissão do homem ao automóvel: “O carro transporta 17 vezes menos passageiros por hora do que o ônibus, 20 vezes menos do que o metrô, três vezes menos que a bicicleta, e pouco mais que a marcha a pé”.
Hoje, São Paulo tem a segunda maior frota de carros do mundo (perde apenas para Los Angeles), com quase seis milhões de veículos, um para cada duas pessoas. Todos os dias, 600 novos carros começam a circular pelas ruas da capital paulista. O uso do automóvel é de país rico e a estrutura de metrô, pobre: são apenas 61,3 km de extensão em quatro linhas e 55 estações e a modesta 12ª posição em número de passageiros transportados por ano (483 milhões).
Fotomontagem / Valor
A construção do trecho Sul do Rodoanel deve contribuir para reduzir os congestionamentos de trânsito em São Paulo, já que os caminhões vindos de outras cidades poderão passar diretamente de uma rodovia para outra
São Paulo não é caso isolado. Se na década de 1970 os investimentos em transportes no Brasil chegavam perto de 2% do PIB, nas últimas duas décadas não superaram 0,5% do PIB anual. A retração veio em um momento em que a população urbana crescia. Em 1970, 52 milhões de pessoas moravam na área urbana. Dez anos depois, esse número pulou para 80 milhões e, passados mais 20 anos, chegou a 140 milhões. Isso significa que 80% da população viviam em cidades no começo do século. “A falta de investimentos nos sistemas de transporte fez com que a qualidade de vida nas grandes metrópoles piorasse de forma expressiva, tornando-as caras, inviáveis e poluídas”, diz o presidente da Associação dos Engenheiros e Arquitetos do Metrô, Manoel da Silva Ferreira Filho.
Durante a década de 1980, a renda per capita do brasileiro começou a declinar diante da inflação galopante. Mesmo com a melhoria nos últimos anos, mais de 30 milhões de brasileiros nas regiões metropolitanas não utilizam o transporte público, por não terem como pagar. “Com 80% da população nas áreas urbanas, já vivemos um apagão urbano no transporte há muitos anos”, afirma o presidente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, João Luiz Dias. “Os sistemas das principais cidades estão saturados ou prestes a ficarem assim.” É a ponta de um iceberg muito maior: os sistemas de saúde, saneamento básico e de habitação popular tendem a ser cada vez mais pressionados. Problemas que atingem não apenas São Paulo ou Rio de Janeiro, mas também outras grandes cidades. Nos próximos dez anos, a população em favelas poderá dobrar e chegar a 14 milhões de pessoas.
A atual situação do transporte público tende a piorar. Em 1997, estudo do governo paulista apontava que 51% das viagens na região metropolitana eram feitas individualmente. Dez anos depois, as estatísticas indicam que 53% das viagens são feitas por carros. No Rio de Janeiro, o quadro não é diferente. Com menos de 40 quilômetros de trilhos de metrô e um sistema de ônibus transportando menos de 500 mil passageiros, o carioca também convive com cada vez mais carros e poluição.
O engenheiro Mauro Arce, secretário estadual dos Transportes de São Paulo, é um cético, como todo realista. Assim como Figuiredo Ferraz, que gosta de citar em suas entrevistas, ele não acredita que uma cidade que jamais teve planejamento urbano consiga resolver no curto prazo seus principais gargalos de trânsito. “Não adianta apenas construir rodoanel, novas pontes, trem- bala, não adianta. Vejo a problemática de uma região metropolitana de um modo muito mais complexo. É preciso ter uma certa ordenação e isso São Paulo só conseguiu em raros momentos de sua história”, afirma Arce. “É claro que obras precisam ser feitas. E vamos fazer. Imagine São Paulo sem as Marginais [avenidas ao longo dos rios Pinheiros e Tietê]. Seria muito pior. Mas isso não quer dizer que se tenha sempre que abrir mão do mínimo de planejamento.”
Melhorar o trânsito nas nas Marginais do Pinheiros e do Tietê, dos mais caóticos da cidade, é meta prioritária da Secretaria dos Transportes. Em parceria com a prefeitura, o governo do Estado investiu R$ 110 milhões para pavimentar 71 km das duas marginais. Com isso, a média dos veículos, segundo avaliação da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), passou de de 30 km/h para 40 km/h. Já o projeto que previa a cobrança de pedágio nas Marginais, com a construção de oito novas faixas de tráfego, que chegou a empolgar o prefeito Gilberto Kassab e o governador José Serra, foi engavetado. “Estudos mostram que a construção de novas vias implicaria na desapropriação de uma área muito extensa. O custo seria muito alto”, afirma Arce.
Numa perspectiva de prazo mais longo, a secretaria dos Transportes conta com duas grandes obras para ajudar a atenuar o inchaço urbano em São Paulo: a reforma do sistema viário Anhangüera, que vai diminuir os congestionamento na saída daquela rodovia para a Marginal do Tietê, e a construção do trecho Sul do Rodoanel, com o objetivo de melhorar o trânsito vindo do interior com destino à Baixada Santista, principalmente o de caminhões que vão em direção ao porto de Santos. O projeto de reforma do sistema Anhangüera, orçado em cerca de R$ 270 milhões, inclui a construção de mais três pontes no entroncamento da rodovia com a Marginal do Tietê. Sua execução deve estar concluída em 2010, o mesmo prazo de construção do trecho Sul do Rodoanel, com 61,4 quilômetros de extensão, e custo total de R$ 3,6 bilhões. Os recursos são do Estado e do governo federal, por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que acaba de liberar R$ 1,2 bilhão, a serem desembolsados em quatro parcelas de R$ 300 milhões.
O crescimento das cidades também produz o fenômeno da conurbação, que aproxima e acaba unindo, geograficamente, várias cidades. Surgem assim as regiões metropolitanas, pelas quais se espraiam, agravados, os problemas de gestão urbana. O mesmo processo vai unindo, cada vez mais, as cidades que se estendem às margens do rio Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro. Para ligar os dois principais pólos urbanos do país – , talvez se estendam um dia os trilhos de um trem-bala, projeto anunciado recentemente pelos governadores de São Paulo, José Serra, e do Rio, Sérgio Cabral. A viagem poderia ser feita em pouco mais de uma hora. As obras, numa primeira estimativa, custariam R$ 18 bilhões e seriam concluídas em oito anos, no prazo mais otimista. Um grupo de estudos tem até março de 2008 para apresentar um anteprojeto. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco Europeu de Investimentos (BEI) poderão participar do financiamento da obra, junto com investidores privados.
Os entusiastas do trem-bala argumentam que o projeto, além de criar mais uma alternativa de transporte entre São Paulo e Rio, imprescindível em tempos de crise aérea e de reconhecida falta de estrutura das estradas, poderá ser uma importante fonte de renda para os dois Estados. Seriam, segundos os primeiros estudos, 32 milhões de passageiros por ano.
“São números fantasiosos. Não há essa demanda. Para tanto, é preciso que todo paulista e carioca combine que só vai viajar de trem-bala. Não há demanda que justifique um orçamento de R$ 18 bilhões. É uma obra que dificilmente se viabiliza do ponto de vista econômico, a não ser que o Estado coloque recursos no projeto. A iniciativa privada não vai bancar só porque gosta de paulista e carioca. Estou dando minha opinião pessoal, como engenheiro, já que o projeto do trem-bala não está sob minha responsabilidade”, diz Arce. “É preciso também levar em conta o aspecto geográfico. São Paulo está 800 metros acima do nível do mar, ou seja, o trem teria de descer até o Rio. Claro, não há desafio que a engenharia não consiga vencer, mas isso certamente aumentará muito o custo do projeto.”
Júlio Lopes, secretário de Transportes do Rio, discorda. “Acredito fortemente no projeto do trem-bala. Precisamos projetar a estrutura modal para daqui a dez anos. Se o Brasil continuar crescendo a 4% ao ano, teremos um caos imensamente maior do que está hoje. A estrutura rodoviária, que liga São Paulo ao Rio, por mais bem conservada que seja, não vai conseguir atender à demanda projetada de dez anos de crescimento das duas maiores cidades do país”, afirma. “É muito mais inteligente e razoável investir numa alternativa modal, baseada num trem de alta velocidade, do que alterar toda a estrutura logística de transporte entre Rio e São Paulo, ou apostar, por exemplo, num terceiro aeroporto em São Paulo, que custará quase o mesmo preço”.
Lopes tem que trabalhar duro, já agora, para equacionar, se não para solucionar, os problemas causadas pela urbanização ´na própria cidade do Rio de Janeiro e em seu entorno metropolitano. Os números do trânsito na cidade, assim como os de São Paulo, são desesperadores. Diariamente, 160 novos carros, caminhões, motos e vans invadem as ruas do Rio. O sistema de transporte ruiu. Os trens, que chegaram a transportar cerca de 1 milhão de passageiros por dia, nos anos 1980, hoje transportam 450 mil. O metrô, inaugurado em 1979, cresceu apenas 1,5 quilômetro por ano, desde então, e totaliza hoje 37 quilômetros, com 33 estações.
“Estamos aos poucos recuperando o nosso sistema de trens. Tanto que conseguimos pular para 450 mil passageiros por dia, desde que assumimos, um número ainda modesto, mas muito melhor do que no auge da crise”, diz Lopes. “E estamos em negociação para resolver o gargalo histórico do metrô. No fim de 2009 inauguraremos a estação General Osório, em Ipanema, que significará mais 80 mil passageiros por dia.”
Uma das soluções para o transporte público será, sempre, aumentar a extensão das linhas metroviárias. O BNDES está próximo de aprovar financiamento superior a R$ 1 bilhão para a extensão da linha 2 do metrô paulistano, com instalação de mais três estações. “Estamos buscando criar novos mecanismos de financiamento, via mercado de capitais, como lançamento de debêntures”, afirma Charles Marot, do departamento de transporte urbano do banco. Mesmo assim, as dificuldades são muitas. Atrair o investidor privado não é tarefa fácil, já que transporte público está ligado à renda da população e geralmente é concessão do poder público.
Fonte: Valor
