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“Homo sapiens” no mercado

Mercados foram feitos para ser xingados. Pelo que se ouve de uns tempos para cá, é o que merecem essas entidades malignas, obedientes a nefandos desígnios neoliberais. No entanto, quem não gosta de um bom vinho? Ou de um “gruyère” para acompanhar? E que tal um jantar a dois no Petit Canard, em Nova York?
Só aparentemente não há nexo entre essas indagações que se contrapõem. Pois onde se encontrariam o vinho de rótulo vistoso, o queijo de fina procedência, o restaurante de várias estrelas e tantas outras coisas de características muito específicas, senão em situações “de mercado”?
Preços são importantes, mas os mercados de singularidades não se formam, nem funcionam, com base nas mesmas regras dos mercados de bens de massa
Mas não serão mercados quaisquer, esses do vinho, do queijo, dos restaurantes elegantes, do cinema, e também dos serviços do psicanalista e até do dentista. Serão mercados nos quais o consumidor é, antes de tudo, um avaliador das “qualidades” do que pretende adquirir, ou seja, os bens e serviços que se destacam por suas “singularidades”.
O francês Lucien Karpik, nome notável da sociologia econômica, professor da prestigiosa École des Mines, em Paris, está de volta ao assunto, com seu livro “L´Économie des Singularités”, publicado pela editora Gallimard. É leitura obrigatória para quem pretenda compreender como funcionam os mercados, sem o grude de análises extremistas que nada explicam e só confundem, freqüentemente atirando teorias e práticas de compra e venda ao poço sem fundo das mistificações ideológicas.
Mesmo os mercados de massa não são mais pensados, faz tempo, como universos únicos, em que os consumidores são tratados de forma indiferenciada
O consumidor de singularidades faz julgamentos, não apenas contas. Esse consumidor não é, então, o “homo economicus” típico das teorias de linhagem neoclássica, aquele sujeito “racional”, que procura alcançar o máximo de satisfação, vidrado em utilidade, e solitário nas suas decisões, num mercado de equilíbrio mecânico entre oferta e procura. O consumidor de singularidades – ao mesmo tempo contidas em e representativas de bens culturais, serviços profissionais personalizados, bens de luxo, entre outros – é ator em mercados “socialmente construídos”. O “homo economicus”, individualista e iludido na pretensão de dispor de todas as informações necessárias para decidir corretamente, é bem mais parecido com as supostas vítimas da sanha neoliberal. O consumidor de singularidades corre riscos, pode errar em suas avaliações, mas não é um autômato egocêntrico. É real, pensa, emociona-se, é socialmente ativo. É um “homo sapiens”.
Como explica Ricardo Abramovay, professor titular do departamento de economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (ver artigo na pág. 13), “uma das mais importantes preocupações da sociologia econômica consiste em estudar os mercados como construções sociais e não como entidades cujo funcionamento corrói a cultura, a ciência e os próprios vínculos sociais”. Essa linha de pensamento e estudo envolve uma crítica dupla: à idéia de que mercados são mecanismos neutros de equilíbrio entre indivíduos isolados uns dos outros e à noção de que são fatores de corrupção e pasteurização da cultura humana. O livro de Karpik toma como ponto de partida essa ambivalência, “que faz dos mercados entidades ora endeusadas, ora demonizadas, mas quase sempre pouco estudadas e pouco compreendidas”, diz Abramovay.
Mercados de singularidades têm características que os recomendariam como uma espécie de padrão desejável para todos os mercados. Convém, porém, não fazer transposições apressadas. Em entrevista ao Valor Karpik adverte que a expansão dos mercados de singularidades – que, na França representariam perto de um quarto de todo o produto nacional – ainda é “uma aventura antropológica cheia de incógnitas”, que está apenas começando. Uma das razões que sugerem cautela quando se tenta fazer projeções a respeito da generalização dos mercados de singularidades, diz Karpik, está no fato de que essa evolução vai depender “da capacidade dos produtores de recusar a ´dessingularização´ e, também, do grau de resistência dos consumidores em usar em larga escala, e por comodidade, os dispositivos que fovoreçam a ´dessingularização´”. Isso significa que “o adversário não é necessariamente ´o outro´. Ele está também em nós mesmos”.
O professor John Wilkinson, do Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, doutor em sociologia pela Universidade de Liverpool e pós-doutorado em sociologia econômica pela Universidade de Paris XIII, entende que “a dinâmica da economia de singularidades começa a ser a norma para o conjunto da economia”. Isso significa que “a coordenação dos mercados se torna cada vez mais visível, expondo os interesses e valores de distintos grupos”. Wilkinson dá exemplos: “Na montagem de sistemas de garantia, de normas e ´standards´ e de certificações, pode-se ver o que os sociólogos econômicos chamam de ´construção social´ dos mercados.” Wilkinson também observa, a esse respeito, que a teoria das convenções, à qual Karpik se associa, trata de questões relacionadas aos modos de interesses passarem pelo crivo de valores publicamente justificados, consagrados em normas técnicas que asseguram a objetividade desses valores.
Os primeiros traços do quadro em que hoje se vêem os mercados de singularidades funcionando datam dos anos 1970, quando a produção em massa começou a ceder lugar, nos países de industrialização avançada, a estratégias de diferenciação e segmentação ditadas por mudanças demográficas, no mercado de trabalho e nos níveis de renda e sua distribuição. Iniciava-se, assim, a promoção de interesses e valores associados a grupos específicos, que passou a predominar nas estratégias de marketing.
“Essas ´singularidades´ ou ´qualidades específicas´”, ensina Wilkinson, “passaram a ser cada vez mais identificadas, não com propriedades aparentes do produto final, mas com as condições, em geral invisíveis, da sua produção. As condições técnicas e sociais de produção, sua origem, os materiais utilizados e não utilizados, tornaram-se as qualidades mais valorizados.”
Tais qualidades não são comprováveis, nem antes nem, muitas vezes, durante o consumo. Está se falando, então, de “bens de crença” [aqueles cujas características não são observáveis diretamente], sujeitos a uma grande carga de incerteza. Assim, “a falta de informação mina as premissas da escolha racional e exige a negociação de sinais, outros que não os preços, para transmitir a confiança necessária para o funcionamento dos mercados

Fonte: Valor

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